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Direitos da criança e do adolescente

"O voluntário da fila": quem é o homem que organiza a entrega das marmitas doadas por renomado restaurante de SP

Reportagem de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz

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Por Bruna Ribeiro
Atualização:

Crédito: Tiago Queiroz  Foto: Estadão

Se lido de trás para frente, o nome Elizeu vira Uezile. Uezile Santos Barbosa, 44 anos, é paulistano da Vila Medeiros, na zona norte de São Paulo, marido da Jaqueline Ribeiro Neves e pai de três filhos, que moram com as mães.

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Herdou o nome - só que ao contrário - do pai Elizeu, falecido há 14 anos. Primogênito de três irmãos, Uezile começou a trabalhar com 13 anos como ajudante de ourives, um ano após a separação dos pais.

"Eu amadureci muito rápido. Fui começar a ser criança quando já era adulto. Hoje em dia eu amo ler. Adorei O Código da Vinci e sou fã de Paulo Coelho. Busco evoluir a minha mente pela espiritualidade. Já li algumas obras da Zíbia Gasparetto, mas não sou ligado a nenhuma religião", contou.

Embora não lamente o trabalho precoce, uma vez que era uma necessidade financeira, faz questão de proteger os filhos - de 16, 3 e 2 anos - que se dedicam somente aos estudos.

Para sustentar a garotada, Uezile vende churrasquinho em uma barraca na Vila Sabrina, bairro localizado também no distrito de Vila Medeiros, mas está parado devido ao isolamento social causado pela pandemia do coronavírus.

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As dificuldades financeiras decorrentes disso levaram o churrasqueiro a enfrentar uma fila diária para conseguir almoço, em uma ação realizada pelo renomado restaurante Mocotó, no mesmo bairro onde nasceu.

Crédito: Tiago Queiroz  Foto: Estadão

Foi nessa fila que a infância de Uezile se encontrou com outras infâncias - as infâncias de crianças e adolescentes em situação de rua ou de vulnerabilidade que também buscam alimento. Alguns são acompanhados pelas mães e avós.

No dia em que a reportagem visitou o local, uma dessas mulheres, Joana, de 59 anos, havia chegado ao restaurante às 7 horas para guardar lugar na fila e chorou por não ter dinheiro para comprar alimento para os cinco netos, que se alimentavam na escola, com a merenda escolar, antes das aulas serem suspensas.

Assim como outros adultos, Joana era uma trabalhadora informal, vendendo produtos de beleza e fazendo bicos na feira. Agora ela está sem recursos e ainda não conseguiu liberação do benefício do governo.

Uezile também está na mesma situação. O seu benefício foi negado com o argumento de que mais de uma pessoa de sua família recebe o valor, o que não corresponde à realidade de acordo com Uezile, uma vez que a mãe dele é aposentada e a irmã trabalha.

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Algumas crianças chegam ao Mocotó desacompanhadas. João, de 9 anos, e o primo André, de 11, tinham com eles apenas uma bicicleta. Chinelos nos pés com marcas da situação de rua. Calados, os garotos não falaram muito. Mas Uezile contou que eles passam o dia nas ruas e voltam para casa apenas para dormir, em uma comunidade próxima ao restaurante.

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Líder comunitário nato, foi por conhecer as pessoas da fila ou se conectar com facilidade a elas que Uezile naturalmente passou a organizar o fluxo, sendo convidado para ser "o voluntário da fila", função que abraçou com muito carinho desde o dia 10 de abril, após três semanas indo buscar comida para se alimentar.

De lá para cá, ele chega no restaurante Mocotó todos os dias às 8h30 e vai embora até 12h30. "Vamos pessoal!!! Está chamando!! Você é das 11h40, né? " são algumas das frases entoadas pelo voluntário, que pela identificação com a comunidade se tornou uma referência para quem está sendo desafiado pela fome.

Crédito: Tiago Queiroz  Foto: Estadão

Vínculo é a palavra importantíssima para qualquer relação e importantíssima para o atendimento de pessoas em vulnerabilidade social.  Talvez consciente ou inconscientemente o Mocotó tenha acertado em cheio ao promover Uezile a "voluntário da fila", função que rende a ele nada além da satisfação e de uma marmita a mais no fim do dia, quando sobra.

Antes da pandemia, ele também se dedicava ao trabalho voluntário. A cada 50 churrascos vendidos, 10% eram destinados a pessoas em situação de rua. O que sobrava diariamente também virava a janta de quem precisa.

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Quais são os aprendizados de tempos tão difíceis? Uezile nos emocionou - a mim e ao fotógrafo Tiago Queiroz, que me disse pouco antes de irmos embora: "Esse cara é um personagem! "

Já na calçada no caminho de volta, decidimos voltar para conversar com ele e descobrir quem era aquela figura peculiar da fila. E no fim ele nos disse: "Estou emocionado. Só de conversar com vocês já saiu aquela angústia que eu estava sentindo. É bom se sentir reconhecido".

Que neste momento todos nós consigamos nos reconhecer em nossa humanidade, que as políticas públicas respondam às necessidades dos mais vulneráveis com responsabilidade e que Uezile sirva de inspiração para muita gente!

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