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Design a quatro mãos

Peça Nazareth segurada pelos irmãos Campana

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Por Redação
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Na edição de ontem, o Casa& publicou uma entrevista com Fernando e Humberto Campana, dupla de irmãos brasileiros que são referência do design contemporâneo no mundo. Em meio a uma explosão de cores e formas,no estúdio dos dois, em Santa Cecília, centro de São Paulo, eles falaram sobre a profissão e outros aspectos da vida. Confira a íntegra do bate-papo a seguir.

 Foto: Estadão

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O que vocês estão produzindo de mais novo? Fernando - O mais recente mesmo é um projeto de interior para a loja de calçados Camper em Nova York, que é uma loja especial. Faz parte de um tema da Camper, que é "Camper togheter com alguém". Não pode se repetir mais do que cinco vezes. Já fizemos Berlim, Londres, Zaragoza, Barcelona com um tema e Florença com outro.

Como será a de Nova York? Fernando - Esse próximo será baseado na linha Transplastic, uma junção de fibras naturais com o PVC. A gente usa uma cadeira de bar e dá um extraconforto, modifica a tipologia, voltando à cadeira de café tradicional de 1900 ou até mesmo do final do século 19. Humberto - Desenhando uma casa, é o primeiro projeto de arquitetura da nossa vida... Fernando - Eu, depois de 28 anos de formado [em Arquitetura], fora interior de um ou outro interior e os trabalhos de cenegografia, essa é a primeira construção mesmo. Os mais recentes seriam esses aí. A gente acabou de inaugurar a exposição no Vitra. A gente acabou de lançar a edição especial da Lacoste. E uma próxima exposição que nós vamos fazer é no Centro de Arte de da Escola de Arquitetura de Versalhes. Nós demos no mês de junho um workshop para os estudantes trabalharem com garrafas PET, baseado na galeria de espelhos do palácio de Versalhes. Humberto - A escola fica em frente do Palácio. Então a gente os levou nessa galeria para eles fazerem uma interpretação dessa sala com garrafas PET. Fernando - A partir disso, nós nos inspiramos para fazer uma exposição numa galeria que eles têm dentro da escola, que vai ser inaugurada em setembro.

E o hotel em Atenas? Fernando - Esse já tem dois anos. Ele vai ter ainda uns 10 meses de gestação. É um projeto de alfaiataria na arquitetura. Ao invés de destruir ou renovar os móveis, a gente pegou os móveis que já tinha e estamos reprocessando. A idéia é ter o menor produção de entrulho ou lixo. Tem bem o espírito grego? Fernando - Não é muito não, porque eles estão muito novos ricos com a entrada na Comunidade Europeia. A gente tentou ver o que é a Grécia contemporânea, porque a Antiguidade a gente sabe. Mas Atenas não é Chicago, para ter tanta reflexão de luz por causa do frio. Eles fazem muitos prédios com revestimento espelhado. Ali já é um lugar solar. Pelo amor de Deus, aquilo ao meio-dia fica... Humberto - Mas o que está mais curtindo é a experiência. Porque a gente fez um grupo de estudantes da Universidade de Atenas de Arquitetura, e eles estão nos auxiliando. A gente funciona mais como diretor de arte dos móveis, dos quartos, das paredes... Porque é muito alfaiataria. Fernando - Por isso a gente os chamou para compreender essa modernidade. Humberto - Engraçado é que eles estão descobrindo o lado designer deles. E eles estão evoluindo. Isso é que é legal: contaminar o outro. Não ser aquela coisa de ego, ser muito autoral, estar só você lá. Nosso trabalhão é muito de contaminar, contagiar outras pessoas. Fernando - O hotel virou uma escola de design... [risos] Voltando para o projeto da Camper, é uma aposta de retomar lá atrás a lida com a fibra. Fernando - Nós começamos fazendo cestos, era o que nos mantinha para investir em pesquisas mais pessoais.

Como é essa volta? Fernando - Com mais maturidade, aceitando melhor a imperfeição do material. Porque a gente soube aceitar de todos os outros que eram industrializados, mas demorou para compreender a do natural, como a aspereza... Humberto - Também acho que foram necessários 28 anos. Há 28 anos nós fazíamos isso com bambu. Foi preciso ter um distanciamento do olhar para não estar tão viciado. Mas agora a gente está retomando com mais maturidade e segurança. Fernando - É um vocabulário de formas mais forte, para poder empregar o material em determinada tipologia ou função. Vocês têm muitas demandas, seja de produtos, de cenografia, palestras.

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Como lidar com essa agenda? Fernando - A gente reclamava tanto quando o telefone não tocava. A gente ficava se pegando um com outro porque não tinha nada para fazer. A gente tinha idéias e as pessoas não vinham. Acho que hoje a gente não tem do que reclamar. E a gente tenta fazer de tudo e com essa estrutura pequena, de 12 pessoas no estúdio. Tenta não decepcionar ninguém. Só, primeiro, não decepcionar nós mesmos, porque acho que foi isso que nos levou a essa posição de acreditar sempre no que a gente fazia, sem precisar ficar seguindo uma tendência. É por isso que a gente fazia as cestas de bambu para poder, de outro lado, enlouquecer sem compromisso com o mercado.

É difícil para vocês dizer não? Fernando - É. Humberto - Recententemente a gente disse um não para um projeto por uma questão ecológica. A gente passa uma imagem eco friendly, por isso acho legal ter coerência. Fernando - Com o PVC, com a Grendene, a gente conseguiu colocar uma alternativa. O máximo de material reciclado, que são 30%, 40%. Existe uma chance. Mas tem materiais que são sintéticos mesmo, náilon, poliéster... Humberto - Acho que o designer hoje tem que ter esse papel de economia, de ver com o que ele vai trabalhar. Hoje ele é formador de opinião. Fernando - Nem era nosso programa promover a sustentabilidade. Era como favelado: constrói com o que tem na mão. O design da escassez. A gente não tinha capital nem uma empresa que investisse numa ferramenta de injeção de plástico, então usamos o plástico bolha. O que, afinal, traduziu melhor.

Vamos voltar ao passado. Como foi a infância em Brotas? Fernando - Era chata e maravilhosa.

Por quê? Humberto - Não tinha muita gente. Eram as mesas caras, os mesmos lugares. Era sufocante. Fernando - Legal era que tinha cinema. A gente viu do neorrealismo italiano a Stanley Kubrick, Polansky, Godard, Mazaropi, muito Mazaropi... Humberto - Dercy Gonçalves... Fernando - A gente ia todo dia ao cinema, até repetia filme. Isso foi maravilhoso. Aí a gente tentava transpor isso para o quintal. Lembro que quando vi 2001, eu tentava fazer as espaçonaves com mandacaru e bambu. Eu nem aceitava o brinquedo da loja, porque era tão fraquinho perto do que eu via no cinema... Eu via muito filme de ficção. Vi todos. Barbarella. Às vezes nem tinha idade para ver. Eu vi Teorema, com meus pais. Eu vi Saló, numa cidade de 10 mil habitantes. Laranja Mecânica...

E o que mais? Fernando - Para chegar a São Paulo, até Rio Claro era estrada de terra. De Rio Claro a Campinas, era pista única. A Anhanguera só começava em Campinas. Um safári para chegar a São Paulo. Tinha também o trem, que era uma coisa maravilhosa.

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Vocês vêm de uma família de classe média? Fernando - Média média. Meu pai era agrônomo e minha mãe era professora primária. Mas eles assinavam O Estado, a Folha, a Seleções, a Life espanhola e a National Geographic.

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E você, Humberto? Humberto - Eu ia também. Ia a muitos shows da Fenit, naquele momento 1968. A Mila Moreira... Era lindo aquilo. Contaminou toda uma geração. E o outro irmão de vocês? Humberto - Ele é mais tradicional. Seguiu uma profissão burguesa. É economista. Fernando - Acho que era mais conformista com a cidade. Jogava futebol...

O contato com ele é parcimonioso? Fernando - Ele mora no Nordeste, mas tem um filho dele que trabalha aqui com a gente.

Ele era o mais velho? Humberto. Sim. Eu sou o do meio. Fernando - Outra coisa que eu acho importante falar: escola pública era boa. Eu aprendi francês, minha segunda língua, lá. Já o Humberto entrou na São Francisco sem cursinho. Saiu do terceiro colegial e pum... Então, era outra coisa. Isso era igual a que todo mundo tem hoje e vai fumar crack...

A mãe de vocês continua lá, na mesma casa? Fernando - Sim. Humberto - Engraçado é que nessa casa a gente fez um jardim com nosso pai. A lembrança do meu pai é esse jardim. Ele gostava muito de planta. Ele arborizou a cidade toda com ipês e a gente pegou esse amor por jardim. Brotas deve ter mudado muito por conta desse marketing dos esportes radicais... Fernando - Sim. Mas com meu pai a gente conheceu o município todo. Ele fez o recenseamento de 1970. Ele fez sozinho. A área rural ficou para ele. E a gente ia, toda tarde, a cada dia numa fazenda. Era 1970. Tinha lugar onde não se sabia o que era carro.

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Vamos falar do período das cestas de vime e dos espelhos, que, imagino, devem ter vindo de uma necessidade de expressão e sobrevivência. Vocês guardaram alguns exemplares? Fernando - Tem um na exposição do Vitra. Humberto - Algumas, outras foram vendidas. Porque era meu ganha-pão sabe?.

Você que começou? Humberto - Sim. Era como necessidade de expressão porque durante a faculdade eu me descobri criador, com uma alma para criar. Eu ficava lembro que eu ficava assistindo as aulas e ficava desenhando.

Como estava desenhando agora... Humberto - Meus colegas, eles têm um monte de cadernos com desenhos meus. Foi necessária essa realidade de chegar, de formar, de contato com a realidade que não tinha nada a ver comigo que me forçou a procurar um escape. Eu fui para a Bahia, para Itabuna, para ser advogado da cooperativa de cacau, imagina? Eu era tão medíocre como advogado que nem me aceitaram. Então eu tinha um amigo lá que era arquiteto e me convidava. Ele falava: enche essa parede de conchas. Aí fui me desenvolvendo e me descobrindo.

Quando vocês se encontraram? Fernando - Em 1983. Ele já tinha voltado da Bahia e já tinha aqui o ateliê há dois anos. Eu estava me formando em Arquitetura e fazendo monitoria e assistência de montagem da 17.a Bienal. Foi engraçado. Foi um preparatório, eu não sabia porque tinha entrado na Bienal. Estudei um ano de História da Arte. Foi um preparatório para conhecer o outro lado da arte, o abstrato. Eu tinha toda aquela noção da arquitetura e ainda muito racionalista. Eu queria o pós-modernismo. Eu não pudia fazer nada. Tudo o que eu fazia, tirava nota baixa. Só alguns me davam notas boas. O resto me massacrava. Acabei o Humberto me chamando lá para colar concha e fazer entrega de Natal. Humberto - E esse foi o nosso chão de fábrica, a cestaria, sabe? Hoje quando a gente vai a uma indústria sabe o que a gente quer, sabe dialogar com o operário.

Não é como o cara que faz desenho industrial numa faculdade e já sai... Humberto - Não. A gente entregava esses cestos, fazia nota fiscal, embalava... Fernando - Designer, modelo e ator... [risos] Todo esse percalço. A série Dês-Confortáveis foi feita em 1989. Pode-se considerar que é a partir dela que os irmãos Campana tornaram-se designers legítimos? Humberto - Com certeza. Fernando - A série Dês-Confortáveis foi uma tetativa da gente de se tornar escultor. Foi mesmo proposto assim. A gente tentou de 1983 a 1989 fazer tudo com uma superfície perfeita, com mármore e alumínio, e tudo tinha um furinho, ou um risco e os clientes não aceitavam. Aí a gente falou: a gente não é alemão, a agente não é escandinavo. Quando o Humberto fez aquela primeira cadeira com um espiral, eu vi aí uma coisa mais libertária, de desencanar de ser reto...

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O desconforto me parece que tinha uma antena com o pós-modernismo do movimento italiano Memphis, que não chegou a reverberar muito por aqui. Humberto - Com certeza. Acho que o Bauhaus está ainda muito arraigado no design brasileiro. As escolas de desenho industrial estão muito focadas naquela escola de Ulm.

Quem foi que deu força para isso? A editora Maria Helena Estrada e a designer Adriana Adam. A gente estava fazendo as Dês-Confortáveis, que nem tinham esse nome, para o nosso prazer. Completamente oposto daquela perfeição, do racionalismo, e aceitando o material como ele era, envelhecer com beleza...

O que desse esse clique? Imagino: tentamos aqui e não está rolando; então, quer saber de uma coisa... Humberto - Todo aquele conceito de cestos e de conchas, aquela tentativa de ser um designer certinho, se esgotou. Fernando - Foi tentar negar. Foi tentar ser escultor. Humberto - Também acho que um criador, ele esgota um tema. Aí ele tem que morrer, tem que descer às trevas para tentar trazer algo novo. Nossa carreira é sempre pontuada por isso. A gente pesquisa um tema à exaustão. Foi o ziguezague, o papelão, as cordas...

As pessoas devem cobrar muito. Não tem uma coisa assim? Fernando - Cobram. Tem umas coisas engraçadas. Uma vez saiu no Estado a Ziguezague e em outro jornal e o único telefonema que a gente recebeu foi para consertar cadeira de terraço... [risos] Era tão engraçado... A gente pensava: agora vai melhorar a vida, a gente conseguiu uma publicação. Parecia que a gente precisava fazer tudo errado para dar certo.

O que mudou em vocês nesses últimos 20 anos? Humberto - A gente viaja. Fica um mês aqui, um mês fora. De resto, não mudou nada...

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Vocês escreveram que quando jovens queriam fazer intercâmbio mas não dava... Fernando - Eu queria ser aeromoço. Quando eu estava fazendo a Bienal, me inscrevi na Transbrasil, porque falava francês. Me chamaram um mês depois de eu estar trabalhando com o Humberto. Se não tivesse sido designer... [risos] A Transbrasil faliu, estaria na rua.

E você Humberto, sempre teve essa vontade de viajar? Humberto - Vontade de viajar também. Mas eu viajei. Meu pai tinha uma fazenda, ele vendeu. A primeira coisa que falei foi que queria ir para os Estados Unidos. Aí eu fui, fiquei em Nova York. Eu sempre gostei de viajem. Mas mudou também essa cobrança que existe sobre a gente. Por exemplo, eu fico um mês aqui, eu fico trabalhando, fazendo protótipos, já pensando no Salão do Móvel, que é em abril. A vida mudou nesse sentido.

Vocês têm contrato com a Edra de quanto tempo? Humberto - Contrato assim de estômago, com base no Massimo Morozzi. Pensei que vocês tivessem um número de coleções acertada. Humberto - A gente tem muito convite para trabalhar com outras empresas. Mas eu acho que a Edra sabe nos traduzir muito bem. Essa coisa da alfaiatria e do artesanto, que o nosso trabalho precisa.

Existe um quase clichê de que Humberto é faceta mais sensível da dupla, enquanto Fernando é a mais racional. O que existe de contraparte nisso? Humberto - O que é sensibilidade? Ele tem a sensibilidade dele. Quando um está fraquejando o outro vem e socorre os projetos, tudo no trabalho. Eu também tenho meu lado racional, que é trabalhar com as mãos. Nessa hora é que vem todo o cálculo para aquilo parecer leve visualmente ou até fisicamente. Tem toda uma racionalidade, não é só intuição. Fernando - Ele tem essa manualiade, um bordado, e eu consigo fazer isso numa escala maior, que me permite não me envolver fisicamente com o projeto muitas vezes. Às vezes ajudo uma semente que está gestando na cabeça dele a viver e ter uma funcionalidade.

Vocês se sentem confortáveis com essa divisão? Fernando - Total. Até quando discute, se for colocar na balança aquele pingue-pongue de briguinha chata, os dois estão zero, você entende? Os dois fizeram a mesa coisa: a parte chata e a parte criativa iguais. Os criadores, por conta da sensibilidade, são tidos muitas vezes como loucos. O quanto vocês já se aproximaram de fato da loucura? Fernando - Não o suficiente para chegar... Humberto - Às vezes. Acho que eu lido com a loucura. Acho que um criador precisa de sombra. Acho que precisa ir até o inferno para... Fernando - Mas não a um nível de precisar ser internado [risos]

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Um remedinho aqui... Fernando - Não tomo nada hoje em dia. Tenho sono completamente desregulado... Humberto - Eu não descanso. Eu exijo muito de mim criativamente, o que me dá até medo. Eu me apoio para viver em cima do meu trabalho. Fernando - É possível despirocar para controlar da avalanche de coisas, de exposições, do que propriamente pelo trabalho. Por isso é que a gente tem esse lugar aqui, com essa estrutura, pouca gente, aqui no Centro, sem dar bandeira, porque é o que ajuda a segurar esse outro lado. É mais difícil tentar mostrar que ainda você é normal. Aí acho que despiroca. Humberto - Ao mesmo tempo tem uma disciplina tão grande. Eu acordo cedo. Fernando - Eu não acordo mais. Humberto - Às 6h30 já estou malhando na Runner.

O trabalho de vocês é tido como urbano. Mas o quanto há do fazer caipira nele? Fernando - É muito presente. No tempo da cestaria, a gente pegava as cestas no interior, balaio, e transformava em cestas country para vender no Mappin. E tem o olhar, as soluções caipiras são interessantes. Quem potencializava isso era a Lina Bo Bardi. Eu adorava ver quando ela mostrava no Masp alguma coisa de um designer anônimo. Sem ter vergonha dessas coisas. Humberto - Acho que o nosso trabalho faz essa fusão entre o urbano e o rural, seja através dos materiais ou da forma como ele é manufaturado, muito artesanal, o que é muito ligado ao campo.

Aliás, você sofreram preconceito por serem caipiras quando vieram para São Paulo? Fernando - É difícil falar porta, porteira... [acentuando o erre típico do interior de São Paulo] Humberto - Eu tive. Na faculdade eu era rejeitado... Fernando - Engraçado porque, no meu caso, eu sabia todos os filmes, ia à Fenit ... Meu outros colegas não sabiam. Eles queriam ser modernos, mas minha modernidade caipira era incrível. Humberto - O caipira é mais antenado. Ele olha o universo. Aqui está tudo muito disponível.

Como é trabalhar direto um com o outro? Não cansa? Fernando - Quando a gente briga, fica no máximo um dia sem se falar. Por isso acho que é bom, dá uma dinâmica. Esgota. Tem uma tempestade. Daí renova toda a água. A gente não tem muito filtro. Além de irmãos, temos cumplicidade, somos amigos. Isso solta a crítica tanto na criação quanto no comportamento. Humberto - Às vezes sufoca.

Vocês citaram Lina Bo Bardi. Que outras influências há? Os dois - Niemeyer. Humberto - Eu nasci quando Brasília foi projetada. Sabe, aqueles edifícios no Planalto Central. Não existia nada. Pareciam uns esqueletos de dinossauros. A quantidade de reportagens que saíam na época sobre Brasília. Era o sonho o futuro. O Brasil finalmente estava equiparado aos Estados Unidos, Suécia, você entende? Contaminou muito. Burle Marx também. Fernando - Outra coisa que nossos pais fizeram. Eles foram de Fusca até Brasília alguns anos depois da inauguração para conhecer. Aquilo para mim era o futuro, aquelas formas...

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A perseverança é um conselho básico que vocês dão a jovens designers no livro recém-lançado. Mas não é preciso ter sorte também? Fernando - Acho que tem aquele dia certo, em que a medalha está lá. Quando a gente foi mostrar foi mostrar as fotos das Dês-Confortáveis na Nucleon 8, na hora quiseram. Humberto - E também ter encontrado com o Massimo Morozzi.

Como foi? Humberto - Acho que é cármico. Ás vezes olho para o Massimo. Eu olho para ele e sinto que eu já o conheci de outras... Fernando - Foi engraçado porque ele entrou em contato em 1998...

 Foto: Estadão

A cadeira Vermelha já estava no MoMA? Fernando - Não. Foi no mesmo ano. As duas coisas ao mesmo tempo Isso deve ter sido um rito de passagem para vocês... Fernando - Foi a primeira Vermelha produzida. Ele viu num livro americano chamado "50 cadeiras", que mostrava a cadeira e o processo de construção. Ligou para cá, o Humberto nem estava. A gente estava naquela situação, vergando, não ganhava nada, desistindo... A Vermelha, todo mundo falava, isso ninguém vai produzir, é doido, é uma escultura. Ele ligou é falou em inglês, porque na época eu não falava em italiano, e disse: "Eu sou Massimo, diretor de arte da Edra [idra, em inglês] e queria fazer a cadeira Vermelha". Eu pensei que era a Hydra, de descarga. Parece piada... Liguei para a Maria Helena, a quem ele conhecia e pediu nosso telefone, e ele me explicou que era legal. Daí rolou. Do MoMA, a gente tinha recebido o convite quase um mês depois do Salão do Móvel, que é em abril, e era por fax. Só que não tinha papel de fax na máquina... [risos]

Hard times... Fernando - Aí me ligam e falam: vocês não estão respondendo, a exposição no MoMA vai ser em novembro e já é agosto... Perguntei que exposição. Explicou e eu disse que podia mandar o fax, que agora tem papel... Engraçado. No livro vocês contam do Golzinho velho que vocês dirigiam. Hoje que carros vocês têm? Fernando - Eu tenho uma Eco Esporte. Humberto - Eu também. Fernando - Eu não quero carro que chame atenção. Gosto de andar de janela aberta.

Bem, a sorte entrou na vida de vocês... Fernando - Outra coisa foi com a Europa. Veio o jornalista Marco Romanelli fazer uma conferência no Masp, viu as Dês-Confortáveis e adorou. Foi daí que o trabalho foi levado para a Europa... Humberto - Isso abriu muitas portas. Fernando - Ele incentivava a gente a transportar para a indústria a poética que tinha nas obras.

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O trabalho de vocês já foi chamado de lúdico, de poético. O conceito da transposição do uso de materiais seria a maneira mais adequada de designá-lo? Fernando - Acho que é a subversão... Humberto - É a materialidade. Nosso trabalho é muito focado no material. Fernando - O material vem antes da forma e da função. Ele que vai ditar qual a forma e depois vamos elaborar a função. Se a gente for começar um projeto com toda essa carga poética e a matemática da função, a gente fica parado no computador e não sai mais daqui. Tudo tem que sair como poesia e depois aquilo tem que se transformar em função para ser um produto.

Vocês andaram na contramão.Como foi enfrentar a estética minimalista? Fernando - Para consagrar isso, uma vez, quando essa estética estava no auge do neominimalismo, a gente foi convidado pelo Marco Romanelli para participar de uma mesa-redonda, em que só nós tínhamos essa linguagem maximalista, barroca. A gente mostrava os projetos e todo mundo ria. Humberto - Tinha um riso irônico. Fernando - Pensava: as coisas se alternam. E eu não vou deixar de fazer por causa dessa alternância de tendência. Isso é o que a gente sabe fazer e, acredite ou não, é o que eu penso.

Vocês tiveram um reconhecimento relativamente cedo. Além da persistência e da sorte, é preciso, para isso, estar em sintonia com o espírito do tempo, não é? Humberto - Eu acho. Eu sou muito médium. Eu tenho uma mediunidade de captar o momento, de traduzi-lo em material. Eu sonho, é mediunidade...

Sonha com quê? Humberto - Hoje sonhei que queria fazer um tapete de veludo. Eu explicava para as meninas: olha façam uns tubos de veludo e tentem fazer um crochê com isso. Agora que me veio... Eu tenho sonhado muito ultimamente, eu trabalho muito, acordo assim de manhã: exausto. [ri]

Vocês fazem terapia? Já fizeram? Humberto - Eu faço. Eu preciso porque minha cabeça vai muito....

Qual a corrente? Humberto - Jungiana [pausa]. E com alguns remédios também... [risos] Fernando - Eu substitui uma coisa por outra. Eu deixei os tratamentos. Eu falei não vou tomar mais e pronto. O médico ficava horrorizado. Posso ir ao extremo de uma coisa e voltar, graças a Deus, sem muitos riscos.

 Foto: Estadão

A cadeira Favela ficou dez anos aqui até ser produzida pela Edra. Falta sensibilidade, investimento ou o que para a indústria brasileira? Fernando - Acho que é ousadia. O timing certo do produto. Produto não é moda, que você coloca na vitrine e já... Humberto - Sabe o que eu acho? A indústria é muito voltada para o consumidor, e o consumidor não é educado para entender o design contemporâneo. Na Europa já tem uma maior compreensão. Vinte anos atrás, tinha muito mais publicações sobre design do que agora. Você vê que a moda preenche muito esse espaço. Não existe diálogo a respeito. Ficou parado naquela coisa do Bauhaus, do racionalismo, e a educação do consumidor é muito voltada para isso. Fernando - Uma coisa que também o empresário europeu tem é a consciência de que o produto tem um tempo para emplacar no mercado. Humberto - Um exemplo: a gente fez esses painéis de OSB [espécie de compensado feito com lascas e sobras de madeira] ... Fernando - Tem que vender nos seis primeiros meses, se não vender, flopa. Enquanto que na Europa, não.

Vc foram contra o mainstream e estão criando um novo mainstream. A gente pode imaginar um dia ver um móvel todo retinho dos Campana? Fernando - Quando tudo estiver torto, acho... Humberto - Acho que um criador sempre se repete, com mais elegância, mais maturidade. Mas a alma dele... Fernando - É o caso daquela recusa daquele projeto que a gente mencionou. Todo mundo fez, por que a gente não? Não é só ganhar o dinheiro, mas manter a reputação e a coerência. Para a gente poder estar legal. Humberto - Transparente, né?

Como é negociar com os estrangeiros? Humberto - Foi muito difícil. Eu tive que aprender italiano para entender mesmo como funciona.

Eles são muito leoninos? Fernando - São difíceis. Não sei como publicar isso. Essa distância que nos separa, um oceano, parece que a gente nunca vai cobrar. Humberto - O Brasil hoje tem uma imagem boa nesse campo, de ser sério, pelo fato da economia. Eles começam a nos enxergar diferente, de igual para igual. Mas no começo foi difícil. Lembro que as pessoas iam para Milão há quinze anos atrás e não podiam nem fotografar os estandes. Fernando - Brasileiro tinha fama de copiador.

E muita gente copiou - e copia - mesmo...Quem é um e quem é outro, afinal? As pessoas confundem muito o nome dos dois? Fernando - Total. Existe um mimetismo. Até no se vestir. Parece estratégia, mas não é. Hoje, não. Mas tem dia que a gente vem igualzinho. Tem até que ligar, se tem uma foto. Mesma cor, a mesma marca... Humberto - Quando eu vou cumprimentar os Bouroullecs [dupla de irmãos e designers franceses] eu nunca sei quem é um que é outro. Aí falo que acontece a mesma coisa com a gente...

Vocês poderiam ter virado totens. Tentam driblar as armadilhas do ego como? Fernando - Trabalhando. Voltando para o Brasil e ficando aqui no Centro. Aí é que está a importância do peso caipira. Humberto - É a essência mesmo. Acho que quando o sucesso sobe, você perde o contato com o seu Deus interior, com o divino. Para mim é muito mais importante...

Você, então, acreditam em Deus? Humberto - Eu acredito em espíritos. Espíritos bons e ruins. Vou, inclusive, à Federação Espírita. Fernando - Eu acredito. Existe, mais do que espíritos, uma força aí.

Vocês tiveram formação católica? Humberto - Sim. Eu tive um acidente no Grand Canyon eu quase morri, sabe, e eu rezei para Nossa Senhora e consegui sair desse redemoinho. Fernando - Às vezes eu esqueço de rezar, nem rezar, pensar, que as coisas podem melhorar e acreditar que aquilo vai te fazer bem. Se a gente não tiver isso... A gente cria isso até no trabalho da gente, faz força para que as coisas irem

Por custam tão caro as peças de vocês? Tudo bem que é uma edição numerada e limitada, mas a poltrona Banquete, por exemplo, está cotada em US$ 46 mil... Humberto - O trabalho é muito artesanal, de alfaiataria mesmo. A gente escolheu esse caminho. Fernando - Os materiais são baratos, mas o tempo de elaboração, de engenharia nossa... Como fazer para parecer que aquilo é de verddade, e não ter ali por trás um monte de parafuso. Por exemplo, tentar desconstruir essa cadeira [a Vermelha], tentar fazê-la parecer leve visualmente, você coloca a mão e só vê corda, praticamente não tem estrutura...

Vocês não têm amigos que reclamam? Pensam fazer uma segunda linha? As peças de OSB foram uma tentativa. Custavam no máximo R$ 2 mil. Não vendeu. Já a Favela é produzida por alemão no Sul, exportada para a Europa e reimportada em euro - e o povo paga. A gente ia vender ao preço de 500 dólares; hoje ela custa 4 mil euros. A Vermelha, a mesma coisa, chegou a custar R$ 500... E vocês nunca pensaram em entrar na produção? Só ficam na criação? Fernando - O que a gente produz aqui é o que não pode ser seriado, em edição limitada, o que fica mais caro ainda. Humberto - A gente tem um projeto que seria bom se alguém no Brasil se interessasse. A gente tem uma cadeira de papel machê. Fernando - É uma peça bacana, que custaria 100 euros. Hoje a gente tem a Alessi, que é mais democrática, além da Grendene, que é a mais de todas, afinal, com os calçados Melissa...

Qual o principal orgulho e vergonha de ser brasileiro? Fernando - Vergonha são esses escândalos todos e a miséria produzida... Humberto¬ - A corrupção que gera miséria... Fernando - Orgulho, ah, de poder de viver nessa putaria. Putaria no sentido da mistura de raça... E a generosidade. Humberto - A generosidade de alma do brasileiro... Fernando - Em todos os sentidos, do sexo ao material, ao familiar, a tudo o mais... É muito diferente. Tudo dá certo quando se parte da mistura.

Vocês trabalham para viver ou vivem para trabalhar? Fernando - [pausa] Um pouquinho dos dois... Humberto - Um pouqinho dos dois [risos]

Ficaram ricos? Fernando - Não. Como a gente faz desde o início, o que é ganho é reinvestido na produção. Humberto - O dinheiro é legal, mas também é uma coisa que não me... Fernando - O que importa é o conforto.

E o que é conforto? Fernando - Liberdade. Poder andar de vidro aberto. Gostaria até de ter um carro mais simples. A chave para viver no Brasil é a liberdade. E liberdade se conquista com simplicidade. Não ostentar. Quem não aprendeu isso ainda sai de Rolex no pulso.

Quais são seu planos planos de futuro, profissionais e pessoais? Humberto - Para o futuro? Eu queria ser um jardineiro. Fernando - Adoraria fazer um parque. Humberto - Plantar mesmo, entender de botânica... Fernando - A gente tem um sítio no Interior. Queria cuidar um pouco mais daquilo, fazer um parque para a cidade... Alguma coisa que ficasse. Fica em Brotas mesmo. Como tudo está sendo devastado pela plantação de cana, a gente conseguiu manter uma área que o nosso pai deixou.E a gente ainda plantou ainda 15 mil árvores de replantio de compensação de carbono. Uma rodovia foi duplicada na área e a gente doou a área para plantar as árvores.

E pessoal? Humberto - Fazer yoga... [risos] Fernando - A gente viaja quase que juma semana sim outra não. Ficar aqui um mês está começando a me dar depressão. Não queria ter isso. Queria ficar sempre bem.

E o que mais vale a pena na vida é? Fernando - Saber viver, porque senão... Humberto - É conseguir mudar a cabeça das pessoas. Pode até ser pretensioso. Contaminar outras pessoas. Acho que a gente fez isso. É o trabalho, é ter criatividade e manter o frescor de mente, uma mente ativa, como a artista Louise Bourgeois ou o Niemeyer.

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