Por que somos desonestos a respeito da feiura?

As crianças se sentem aliviadas quando um adulto conversa com elas com franqueza sobre como conviver com feições diferentes num mundo no qual impera a desigualdade facial

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Por Julia Baird
Atualização:

Os adultos muitas vezes se atrapalham totalmente quando falam sobre feiura física com as crianças. Tentamos minimizar as diferenças insistindo que não são tão importantes, atribuímos uma fortaleza moral maior às pessoas simples ou adotamos uma atitude defensiva quando alguém é descrito como um indivíduo não convencionalmente atraente, ou - pior - feio ou gordo. Afinal, há termos melhores, mais amáveis para usar, ou outras características às quais prestar atenção.

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O autor australiano Robert Hoge, que se define "a pessoa mais feia que você já viu", acha errado dizer às crianças que as aparências não são importantes: "Elas sabem perfeitamente bem que são".

Ex-autor de discursos, Hoge escreveu um livro para crianças, baseado na história de sua vida, intitulado Ugly (Feio). Na sua opinião, as crianças se sentem aliviadas quando um adulto conversa com elas com franqueza sobre como conviver com feições diferentes num mundo no qual impera a desigualdade facial. É importante que elas saibam que este é apenas um dos aspectos da vida, uma característica entre várias outras.

A aparência, em outras palavras, tem um significado, mas não significa tudo.

A aparência tem um significado, mas não significa tudo Foto: Rachel Levit / NYT

Hoge nasceu com um tumor no rosto, e tem graves problemas nas pernas. Ele descreve sua face pedindo que nos imaginemos numa classe onde se ensina arte na qual o professor nos apresenta um pedaço de argila molhada e pede que moldemos com ela o rosto de uma criança. Você labuta, sua, arranca pedaços, alisa dobras, modela um nariz, olhos, queixo. Lindo. Então uma criança atravessa a sala e afunda o rosto que acaba de ser moldado com outro pedaço de argila, separando os olhos.

Seu rosto era assim ao nascer; seus pais choraram desesperadamente quando o viram.

Hoge conta que sua mãe o deixou no hospital, desejando que ele morresse. Somente quando tinha cinco semanas, depois de uma reunião de família em que os irmãos votaram para que ele fosse trazido para casa, os pais foram buscá-lo. Adulto, tornou-se assessor político da personalidade mais importante do Estado: o premiê de Queensland.

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Então, como uma criança poderá encarar a selvagem hierarquia social das aparências que, em geral, começa no jardim da infância, se os adultos se mostram tão atrapalhados para lidar com esta questão?

A vantagem da beleza é algo que foi consagrado há muito tempo nas ciências sociais; agora sabemos que não são apenas os empregadores, os professores, os amantes e os eleitores que preferem as pessoas dotadas do ponto de vista estético, os pais também.

Falamos da forma do corpo, do seu tamanho e peso, mas raramente nos referimos a feições deformadas. E falamos em traços sem personalidade, mas não em rostos que provocariam cócegas nos dedos de um cirurgião

Até na literatura infantil, o que está implícito é que a feiura é temporária ou merecida. Hans Christian Andersen lutou com a rejeição dos seus colegas quando criança, mais provavelmente por causa do seu nariz exagerado, por suas maneiras efeminadas, uma belíssima voz de cantor e o amor pelo teatro; acredita-se que O Patinho Feio seja a história de sua vida. Mas a moral daquela história é que, do corpo daquela criatura marginalizada, sairia um cisne. Por outro lado, não se pode menosprezar a nobreza de um cisme numa multidão de patos comuns.

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E se você nunca deixasse de ser um pato?

Hoge diz que nós não precisamos aplicar um filtro sépia. "Estou feliz em concordar", afirma, "que algumas pessoas têm um aspecto mais agradável em termos estéticos do que outras. Aceitando isto, poderemos passar para a questão importante: e daí?

"Algumas crianças são ótimas em ortografia; outras têm os cabelos mal cortados; outras ainda são excelentes na corrida; outras ainda são baixinhas; algumas são horríveis no basquete. Mas as crianças baixinhas não são só baixinhas. E as crianças que são geniais no basquete, não são apenas isto. Ninguém tem uma única qualidade. O mesmo acontece com a aparência".

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É importante conversar com as crianças, diz Hoge, antes que "sejam sugadas no máquina implacável da pressão dos seus contemporâneos, em que cada diferença é motivo de desastre. Não digam às crianças que são lindas; digam que também é legal ser diferente".

Talvez precisemos abandonar a associação que se fez à origem dos tempos entre feiura física e imoralidade. O termo feio costuma ter também a acepção de moralmente repugnante. Em grego, a palavra kalos significa tanto beleza quanto nobre, enquanto aischros significa vergonhoso e também feio. Os personagens feios dos livros infantis em geral são horríveis e seus defeitos físicos são sinais de outras deficiências. Os vilões têm dentes medonhos, os mentirosos, narizes compridos, os zumbis, crânios grossos. Os avarentos são magros, ossudos, os gananciosos, gordos.

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Talvez fosse importante assinalar algumas das magníficas criaturas que caminharam pela terra sem a necessidade de sinais de distinção ou sem 'curtir' no Instagram, mas que prestaram uma contribuição duradoura - como por exemplo Abraham Lincoln.

E finalmente, é evidente que também deveríamos fazer com que os que se destacaram por outros atributos que não genes excelentes fossem incluídos em algum panteão dos heróis infantis.

Não proibi as bonecas Barbie na minha casa, mas fiquei nervoso quando minha filha acumulou uma multidão delas de tamanho razoável. Um dia, decidi comprar uma boneca Eleanor Roosevelt na loja de um museu; as feições enérgicas e marcantes da esplêndida ex-primeira-dama são envolvidas por um manto de veludo vermelho e por um boa de plumas. Hesitei um pouco em dá-la à menina temendo que a grande Eleanor fosse rejeitada em favor das mocinhas bonitinhas. Agora, ela dorme com a ex-primeira-dama todas as noites.

Tradução de Anna Capovilla

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