Por que a moda tem muito a ganhar com documentários honestos

O novo filme Dior and I prova que a transparência é o melhor caminho para manter a relevância da marca e o interesse do consumidor

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Por Vanessa Friedman
Atualização:
Raf Simons em cena deDior and I Foto: Reprodução

 

Uma das questões mais espinhosas no mundo da moda neste momento – a que faz estilistas e diretores executivos perderem o sono à noite e discutirem durante o dia – não é, como se poderia supor, se é benéfico para uma marca ter o casal Kimye (Kanye e Kim Kardashian) como estrelas, ou o quanto as flutuações cambiais impactarão no ramo. A questão central na indústria hoje é o acesso à informação. Afinal, quanto deve ser exposto ao mundo exterior?

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A moda é um setor teatral, de fumaça e espelhos, do “sonho” sobre o qual todos falam sem parar porque ele impulsiona vendas: você quer esse vestido/bolsa/sapato (apesar de não precisar), pois ele representa alguma possível versão melhorada sua. Ver o suor e as lágrimas envolvidos no processo de produção poderia destruir seu apelo transformador. Mas vivemos em uma era de comunicação direta e transparente, de paus de selfie e tuítes presidenciais, do consumidor como parceiro e do amigo de Facebook, de faça você mesmo e Etsy.

Percebe o problema? Para fazer parte do mundo moderno, a moda precisa deixar as pessoas entrarem, mas sua mística é construída sobre deixá-las de fora. E qual a saída para as grifes? Uma possível resposta é encontrada em Dior and I, documentário que estreou em este mês nos Estados Unidos e deve chegar em breve na Europa. Dirigido por Frédéric Tcheng, o documentário é o melhor relato sobre moda desde The September Issue (2009), de R. J. Cutler, e traz um argumento convincente do porquê as marcas devem enfrentar seus medos e optar pela transparência.

Em outras palavras, é uma resposta eficaz às críticas instintivas ao mundo da moda – basicamente, que ele é superficial e cínico na exploração de inseguranças do consumidor. À primeira vista, Dior and I parece contar a história da estreia do novo diretor de criação da marca, Raf Simons, que entrou em 2012 e teve oito semanas para criar sua primeira coleção de alta-costura. Mas o verdadeiro tema do filme é o lado humano da moda: os homens e mulheres no ateliê de alta-costura que labutam de casacos brancos, fazendo as roupas à mão, alguns há mais de 40 anos. E o que fica após 90 minutos é simples: mais do que algum logo ou pessoa isolada, eles é que são Dior.

A dinâmica do filme está na tensão entre o novo regime e estes homens e mulheres – em especial Monique Bailly, a chefe do ateliê de costura, cuja ansiedade sobre mudanças, tal como a representada por Simons, é revelada nos lábios constantemente franzidos e nas mãos torcidas. E também por Florence Chehet, chefe do ateliê de vestidos, cujo sorriso fácil sugere perspectiva de longo prazo; além de Catherine Rivière, chefe de alta-costura que, quando Simons fica aborrecido por Florence ter sido enviada à Nova York para uma prova de cliente, diz, “Quando uma mulher gasta 350 mil euros por estação, nós não dizemos não”. 

Se Oscars fossem dados aos melhores atores coadjuvantes em um documentário, eles todos seriam nomeados. A disposição de Monique e Florence de mostrar o quão profundamente elas se importam com a sua obra e a casa que herdaram salta da tela e se traduz para além da moda. O que o filme realmente demonstra é que o relacionamento chave em uma marca de moda é entre o estilista e a sala de trabalho, e embora o primeiro possa entrar e sair, é na última que reside a memória institucional. Aliás, a única omissão notável no filme é alguma menção de por que Simons chegou à Dior: a demissão de seu antecessor, John Galliano, por frases antissemitas proclamadas por ele em um bar quando estava bêbado.

Quem não conheceu a era de 15 anos de Galliano (e, antes disso, as eras de Marc Bohan e Gianfranco Ferré que a precederam, e o ano sob a batuta de Bill Gaytten que se seguiu), pode ser perdoado por pensar que a maison Dior foi diretamente do tempo de Dior para o de Simons. Isso é ruim, pois embora o filme seja muito bom em dramatizar o peso da responsabilidade nos ombros do estilista (“É divertido, mas é pesado ... pesado”, diz Simons num carro a caminho da Bélgica), as apostas eram exponencialmente mais altas dado o drama que cercou a saída de Galliano e o breve mandato de Gaytten.

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Segundo o diretor, a decisão de deixar a história de Galliano de fora foi tomada por ele na sala de edição e não se tratou de uma exigência da empresa. “Eu não queria fazer um filme sobre o aspecto midiático da moda”, afirma Tcheng. Ele conta que quando conheceu Sidney Toledano, o diretor presidente da Dior, o executivo mencionou o imbróglio Galliano e lhe disse: “Não é algo que você vai querer ignorar”. Na verdade, a questão polêmica contribuiu indiretamente para a gênese do filme, segundo Olivier Bialobos, diretor de comunicações mundial da grife, que idealizou o projeto. Bialobos contatou Tcheng no fim de 2011 levado, em parte, pelo desejo de ressituar a narrativa pública da marca. “Era importante mostrar nosso lado humano”, diz o diretor de comunicações, que reconhece também os riscos de perda de controle que corria.

Embora a Dior estivesse envolvida no financiamento do longa, Tcheng afirma que nunca cogitou criar um vídeo corporativo. “Eu não estava interessado em entrevistar Marion Cotillard. Falei com vários advogados sobre como me proteger.” Havia uma razão. Quando os protagonistas do documentário Valentino: The Last Esperor, também dirigido por ele, o estilista Valentino Garavani e o presidente da grife Giancarlo Giammetti, viram o corte final das cenas que revelavam a relação de trabalho e amizade com todos os seus excessos e a sua honestidade (por exemplo, o momento em que Giammetti diz para Garavani que ele está “bronzeado demais”), eles ficaram horrorizados. “Por alguns instantes, achei que o filme podia não chegar aos cinemas”, afirma o diretor. “Não era o que eles estavam esperando.”

Mas enquanto o filme de Valentino foi uma produção americana, Dior and I é francês, e isso deu a Tcheng o direito moral ao corte final. “De qualquer modo, se você não arrisca, não consegue”, diz Bialobos. Eis uma lição importante para outras marcas, especialmente porque os documentários estão ganhando força na moda, que flerta com o gênero desde o sucesso de Unzipped, de Douglas Keeve, lançado em 1995.

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Junto com Tcheng, o documentarista francês Loïc Prigent é outro documentarista em ascensão - ele já dirigiu a série em cinco partes Signe Chanel, sobre a coleção de alta-costura de Chanel desenhada por Karl Lagerfeld em 2004, Marc Jacobs & Louis Vuitton e, mais recentemente, La Ligne Balmain. Vale ressaltar ainda os títulos The Director, documentário produzido por James Franco sobre a ex-diretora de criação da Gucci, Frida Giannini, e Mademoiselle C, sobre a revista CR Book, de Carine Roitfeld. Nem todos são bons. The Director é pouco empolgante e soa mais como uma mensagem promocional da Gucci. Mas nos filmes bem-sucedidos, há uma constante: a disposição da parte das grifes de se expor com todas as suas falhas. Chorar, como Simons faz na tela. Duvidar, como Monique. Retrucar como Catherine.

No final da première de Valentino: The Last Emperor, no Festival de Cinema de Veneza – evento ao qual os produtores do filme não tinham certeza de que os documentados compareceriam –, a plateia inteira ficou de pé, virou-se e brindou Garavani e Giammetti (eles estavam lá!) com uma estrondosa ovação. “Valentino percebeu então que o filme havia feito o público gostar dele”, conclui o diretor Tcheng. Afinal, não há nada mais fascinante do que a transparência, e não apenas quando se trata de tule e chiffon. 

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