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A estrutura da gratidão

A gratidão é uma espécie de risada do coração que surge após alguma gentileza surpreendente

Por David Brooks
Atualização:
A gratidão ocorre quando alguma bondade supera as expectativas, quando ela é imerecida Foto: John Hain/ Creative Commons

Eu às vezes fico mais rabugento quando me instalo num hotel chique. Tenho certas expectativas sobre o serviço que vai ser fornecido. Fico impaciente se tenho de vasculhar o local à procura de uma tomada elétrica, se os controles do chuveiro são indecifráveis, se o lugar se considera sofisticado demais para pôr uma máquina de café em cada quarto. Às vezes eu me sinto mais feliz num hotel modesto, onde minhas expectativas são menores, onde o ferro de passar funcionando é um bônus, e um grill para waffles na área do café da manhã é um regalo.

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Este pequeno fenômeno mostra que as expectativas estruturam tão poderosamente nossos estados de espírito e emoções quanto um belo sentimento de gratidão.

A gratidão ocorre quando alguma bondade supera as expectativas, quando ela é imerecida. A gratidão é uma espécie de risada do coração que surge após alguma gentileza surpreendente.

A maioria das pessoas se sente grata parte do tempo - depois que alguém a poupa de um erro ou lhe traz comida durante uma doença. Mas algumas pessoas parecem predispostas à gratidão. Elas parecem gratas praticamente o tempo todo.

Essas pessoas podem ter grandes ambições, mas preservaram pequenas antecipações. À medida que as pessoas progridem na vida e ganham mais status, elas com frequência ficam mais acostumadas a mais respeito e a um tratamento mais cortês. Mas as pessoas com predisposição à gratidão não consideram nada garantido. Elas exibem uma empolgação de principiante com uma palavra de elogio, com desempenho bondoso de outra ou com cada dia ensolarado. Essas pessoas são preocupadas com o presente e hiper receptivas.

Este tipo de predisposição à gratidão merece ser dissecado porque induz uma mentalidade que vai contra as correntes dominantes de nossa cultura.

Vivemos numa meritocracia capitalista. Essa meritocracia encoraja as pessoas a serem autossuficientes - senhoras do próprio destino. Mas as pessoas com predisposição à gratidão são hiperconscientes de sua dependência constante dos outros. Elas apreciam a maneira como foram moldadas por pais, amigos e ancestrais que eram, de alguma maneira, seus superiores. Ficam contentes por o ideal de autonomia individual ser uma ilusão porque se tivessem que depender de si mesmas, estariam muito pior.

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A lógica básica da meritocracia capitalista é que a pessoa recebe por aquilo que paga, que ela ganha o que merece. Mas as pessoas com predisposição à gratidão são continuamente abaladas pelo fato de receberem bem mais do que aquilo que pagam - e serem muito mais ricas do que merecem. Suas famílias, escolas, e acampamentos de verão lhes conferem muito mais do que recebem de volta. Há muita bondade excedente na vida cotidiana que não pode ser explicada pela lógica da troca equitativa.

O capitalismo nos encoraja a ver os seres humanos como criaturas interessadas em si mesmas que procuram extrair o máximo da utilidade. Mas as pessoas com a predisposição à gratidão são afinadas com a economia da doação em que as pessoas são motivadas tanto pela simpatia como pelo interesse próprio. Na economia da doação a intenção pesa. 

Somos gratos a pessoas que tentaram nos fazer favores mesmo quando esses favores não funcionaram. Na economia da doação imaginativa a empatia conta. Somos gratos porque algumas pessoas mostraram que se importam conosco mais do que nós pensávamos. Somos gratos quando outros dão um salto imaginativo e se colocam em nossa mente, mesmo sem nenhum benefício para si mesmos.

A gratidão é também uma forma de cimento social. Na economia capitalista, a dívida é para ser paga ao emprestador. Mas uma dívida de gratidão é paga no futuro para outra pessoa que tampouco a merece. Assim, cada doação repercute fora e atrela círculos de pessoas em laços de afeição. Isto nos lembra que uma sociedade não é apenas um contrato baseado em benefícios mútuos, mas uma conexão orgânica baseada em simpatia natural - conexões que são nutridas não pelo interesse próprio, mas por lealdade e serviço.

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Se a pessoa achar que a natureza humana é boa e poderosa, ela vai se frustrar porque a sociedade perfeita ainda não foi alcançada. Mas se passar pela vida acreditando que nossa razão não é tão importante assim, nossas habilidades individuais não são tão impressionantes, e nossa bondade é seriamente matizada, então ela fica um pouco espantado por a vida ter conseguido ser tão doce como é. Ela fica grata por todas as instituições que nossos ancestrais nos deram, como a Constituição e nossos costumes, que nos tornam melhores do que seríamos sem eles. A gratidão torna-se a primeira virtude política e a necessidade de aperfeiçoar as doações de outros é a primeira tarefa política.

Vivemos numa meritocracia capitalista que encoraja o individualismo e o utilitarismo, a ambição e o orgulho. Mas esta sociedade se esfacelaria não fosse por outra economia, uma em que as doações excedem as expectativas, em que a insuficiência é reconhecida e a dependência celebrada.

A gratidão é a capacidade de ver e apreciar esta outra economia quase mágica. G. K. Chesterton escreveu que "os agradecimentos são a forma mais alta de pensamento, e que gratidão é a felicidade duplicada pela admiração".

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As pessoas com predisposição à gratidão consideram seus esforços grandiosos, mas não elas próprias. A vida não supera seus sonhos, mas supera lindamente suas expectativas.

Tradução de Celso Paciornik

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