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Vinho é com elas

Foi-se o tempo em que a mulher mal sabia a diferença entre um dry martini e um vinho branco seco

Por Vera Fiori
Atualização:

Bem antes de a mulherada invadir os cursos de vinhos, uma senhora, digamos, não muito formosa, deixou rastros borbulhantes em Reims, região na França onde são produzidos os melhores champanhes do mundo. Nicole-Barbe Ponsardin, a poderosa Veuve Clicquot, perdeu o marido aos 27 anos e assumiu as rédeas da cave da família, invadindo um métier eminentemente masculino. De lá para cá, o interesse feminino só vem crescendo e, no Brasil, não é diferente. Presença maciça nos cursos e degustações, a mulher quebra mais um paradigma, seduzida pela cultura do vinho. Um bom exemplo é a Confraria Amigas do Vinho, com sede no Rio, território da cerveja. "Se chope fosse gostoso, não precisaria de tira-gosto", provoca Maria Lúcia Rodrigues, presidente do clã. Segundo ela, a confraria surgiu informalmente: - Fiz um curso de vinhos e, depois, passei a reunir as amigas para degustar a bebida. Elas foram aumentando e, hoje, a confraria tem 8 mil mulheres, e é filiada à International Women in Wine Association. A sede é no Rio, mas há seções em vários estados. O perfil das confreiras é eclético (donas de casa, jornalistas, juízas, executivas), com idades que vão de 20 a 70 anos. A adesão é gratuita, a partir dos 18 anos. "Quando temos nossos encontros, as confreiras pagam somente as suas despesas de adesão, como nos jantares com harmonizações, por exemplo." Assistente social aposentada, Maria Lúcia conta que os encontros são enriquecedores, porque, além de desfrutarem do prazer de saborear vinhos de diferentes vinícolas, nascem novas amizades. "Conhecemos pessoas com histórias de vida fantásticas. Além disso, o vinho é uma viagem à cultura, geografia, gastronomia e etiqueta, tudo a ver com o universo feminino." O único problema, diz, é a balança. "Como os encontros são semanais, engordei 20 quilos." Na confraria, homem só entra em ocasiões especiais, como o Dia dos Namorados, confraternização de fim de ano e Dia Internacional da Mulher. "Para não ter briga em casa, nossos encontros são sempre às quartas, dia de assistir ao futebol", brinca. Por ter invadido um reduto ainda predominantemente masculino, às vezes, as mulheres engolem sapo entre uma taça e outra de cabernet sauvignon. "Um amigo deu uma alfinetada, escrevendo no site dele que perfume não combina com vinho, uma bobagem. Por sinal, ainda persiste a associação do feminino com vinhos doces, espumantes e prosecco. Eu, por exemplo, sou fumante e aprecio um bom tinto." Modismos no universo do vinho, segundo a expert, acontece muito. "No verão deste ano, foi a vez do rosé, que combina com saladas e pratos leves." HARMONIZAÇÕES As mulheres são maioria nas aulas de harmonização de pratos e tipos de vinhos. Um desses encontros aconteceu em abril, na Cave do Douro, localizada no The Royal Palm Plaza, em Campinas. A apresentação, batizada de "Aromas - Degustação - Gastronomia", ficou a cargo de Daniel Valay, chef executivo do resort. Os participantes (53% do sexo feminino) acompanharam o preparo de um menu completo, harmonizado com os melhores rótulos. Na opinião do chef, o interesse feminino por vinhos não é um modismo passageiro. "Elas querem aprender pratos que saiam do trivial. Muitas viajam bastante e querem repetir experiências prazerosas, quando conheceram algum novo rótulo. São bem informadas a respeito", comenta o chef. Saindo um pouco da enogastronomia, se a mulher fosse um vinho, qual seria? "Champanhe, sem dúvida." Nos anos 80, a moda era ter no barzinho uma garrafa do vinho branco doce Liebfraumilch, simplesmente porque a garrafa era azul. Patricia E. Bonfim Marchiori, que participou do evento no Royal Palm Plaza de Campinas, confessa que muitas vezes comprou a bebida pelo rótulo chique ou bonito, e deu com os burros n?água. "Nem sempre o vinho combinava com o prato." Conta que o marido sempre apreciou vinho, e foi no embalo, interessando-se a respeito. "Como sempre gostei de cozinhar, fazemos reuniões mensais com grupos de amigos." A paixão pela bebida é tanta que, antes de o casal se mudar para o atual apartamento, montou uma adega improvisada, em gavetas, para abrigar os "bebês", como ela chama seus vinhos favoritos. Falando em favoritos, costuma dizer que o melhor é o que você gosta. "Depende do prato e da ocasião, mas aprecio um tinto encorpado da uva carmenère." Longe de serem "enochatos" - personagens em voga atualmente -, o casal aprecia o vinho por este proporcionar o prazer da boa mesa, novas amizades e viagens, como a que fizeram ao Sul, conhecendo as vinícolas Miolo e Valduga. Ione de Almeida, vice-presidente de uma multinacional de TI (Tecnologia da Informação), faz parte de um grupo de casais que organiza harmonizações mensais. "Uma vez, planejei o menu e, no dia seguinte, recebi um e-mail de um dos convidados dizendo que a comida estava boa, mas queria mesmo era a lista dos vinhos servidos durante o jantar." Participa dos cursos promovidos pela Associação Brasileira de Sommeliers de Campinas e conta que, no começo, há seis anos, a freqüência feminina era de 10%, saltando para até 50% hoje. Com o marido, fez viagens inesquecíveis, conhecendo as vinícolas do Chile, Rio Grande do Sul, Uruguai. Descendente de italianos, acha que o caso de amor com o vinho pode estar no DNA. "Minha avó sempre tomou uma taça de vinho tinto por dia, o Santa Felicidade." Além do prazer de saborear a bebida, lembra as pesquisas que associam o vinho à longevidade. SONHO REALIZADO A engenheira química Rosana Wagner integra um time seleto de enólogas brasileiras. Com o marido também enólogo, fundou a Vitivícola Cordilheira de Sant?Ana, na fronteira do Brasil com o Uruguai, um sonho antigo que o casal colocou em prática assim que se desligou de uma multinacional de bebidas, onde ambos trabalharam durante mais de 20 anos. Terroir é uma expressão francesa: designa o conjunto de fatores e condições de cultivo que são específicas de um vinhedo e influenciam a qualidade do vinho - uma espécie de pedigree. Segundo Rosana, o terroir Palomas, onde está localizada a vinícola - com 24 hectares de vinhedo -, foi escolhido a dedo. "A região de Sant?Ana do Livramento fica localizada no paralelo 31º, o mesmo de regiões produtoras no Chile, Argentina, África do Sul e Austrália, países que fazem vinhos de excelente qualidade." A Cordilheira nasceu em 1999, mas seus proprietários aguardaram seis anos para lançar os primeiros vinhos, como os tintos cabernet sauvignon e merlot, e os brancos chardonnay e gewurztraminer. "Este último seduziu as mulheres, por ser bastante aromático, lembrando especiarias e lichias." Profissional respeitada no mercado, hoje tira de letra qualquer negociação ou reunião, mesmo que seja a única representante do sexo feminino. Porém, lembra de um incidente ocorrido há mais de 20 anos, no começo da carreira, quando teve de engolir um comentário machista. "Durante uma reunião com 30 homens e só 2 mulheres - eu e uma secretária -, o presidente disse que todos ali deviam ter um objetivo, mas não entendia o porquê da presença feminina." Hoje, a enóloga comemora o prêmio que seu Chardonnay 2005 ganhou recentemente na Expovinis, importante feira do setor. O vinho até pode ter sido o cupido do casal, mas Rosana admite que, às vezes, surgem divergências sobre a produção da bebida. Certa vez, por exemplo, ela achou que o chardonnay estava bom, mas, para ele, tinha carvalho demais. "Tive de dar o braço a torcer. Diminuímos o carvalho em 30% e acabamos ganhando o prêmio da Expovinis com esse vinho." Planos? "Uma cave subterrânea, aproveitando a localização da vinícola, que fica numa colina; lançar um vinho licoroso e, a longo prazo, um espumante." SANGUE ROSÉ NAS VEIAS Diplomada como sommelier na Suíça, Alexandra Corvo, de 32 anos, da empresa Ciclo das Vinhas, abriu uma escola em fevereiro deste ano, tamanha a demanda pelo assunto. "As mulheres representam 2/3 do total de alunos." Segundo ela, elas são cultas, têm 30 anos ou mais, são economicamente independentes e apresentam vontade de aprender. Os cursos de formação duram quatro semanas e incluem degustação, enologia e características das principais uvas, ou seja, o básico para não fazer feio diante de uma carta de vinhos. Além de escrever uma coluna especializada numa revista semanal, Alexandra tem um programa diário na rádio Band News FM e também trabalha com eventos e consultoria. Recentemente, foi convidada a participar da seleta confraria do vinho Periquita, um dos mais consumidos no Brasil e na Suécia. Em seu site, uma divertida biografia dá pistas de onde veio o gosto pela bebida de Baco. "Diz a lenda que um porre de duas garrafas de Mateus Rosé foi responsável pela minha concepção e de minha irmã gêmea, Roberta, numa noite quente demais, na linda casinha cheirosa de forno a lenha de meus avós maternos, na cidade longínqua de Itararé..." A avó paterna, portuguesa, era chegada num vinho do Porto, e o pai sempre apreciou bons vinhos. "Assim fica fácil ser sommelier." Por ofício, vai a festas e eventos, e jura que tenta se conter quando vê algum garçom estabanado, que não sabe o que está servindo: - Alguns nem se dão ao trabalho de olhar o rótulo, e acham que tudo o que borbulha é prosecco. Estudei um tempo na Espanha e trabalhava em um restaurante. Havia uma rixa entre o pessoal da cozinha e do salão, onde eu trabalhava. Diziam que os garçons eram simples "leva pratos". Para não ser chamada assim, perguntava ao chef detalhes do prato que levava aos clientes, e assim fui aprendendo harmonização na prática", fala Alexandra, que tem um senhor currículo - montou a adega do restaurante Figueira Rubayat, e passou pelo DOM, Sabuji, entre outras casas da cidade. O seu vinho favorito só tem um porém: o preço um tanto salgado, confidencia. Trata-se de um tinto dos Vinhedos do Priorato, região da Catalunha: o Les Terrasses, feito a partir de uvas garnache, cariñena e cabernet sauvignon, e cuja garrafa custa R$ 100,00. SABRAGEM As vinícolas brasileiras que elaboram espumantes costumam fazer a sabragem (do francês sabreur, aquele que bem maneja ou luta com o sabre), diante dos turistas que se encantam com a cerimônia. Trata-se da degola da garrafa de champanhe com um sabre, ritual que dá um charme todo especial às ocasiões festivas. Corre a lenda dos sommeliers que a sabragem é uma tradição herdada de Napoleão Bonaparte. Uma versão romântica conta que saudosos e tomados pela pressa de namorar suas mulheres, o general e seus soldados encontraram uma forma mais prática e rápida de abrir as garrafas. Segundo Carina Cooper, sommelier da vinícola Salton e uma das poucas mulheres que fazem e ensinam a sabragem, a técnica consiste em segurar o sabre e, num golpe firme, deslizar a lâmina contra o gargalo da garrafa, que se rompe, expulsando a rolha. "A alta pressão da bebida na hora do corte impede que fragmentos de vidro entrem na garrafa. O champanhe deve ser tomado na hora, porque todo o gás sai da garrafa", explica. O golpe não tem muito segredo, mas a garrafa jamais pode estar em temperatura quente, caso contrário, a bebida espirra para todos os lados. Carina entrou no métier por acaso, quando, em 1997, integrou uma das primeiras turmas da Associação Brasileira de Sommeliers. "Sempre trabalhei em restaurante como gerente de bebidas e alimentos, mas não imaginava que o vinho seria o meu ganha-pão." Além de seu trabalho junto à Salton, e das aulas que dá na Faculdade Anhembi-Morumbi e no Senac, gerencia adegas particulares, algumas com até 4 mil garrafas. "Catalogo os vinhos e os organizo conforme um critério definido com o proprietário."

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