Uma mulher no gelo

A fotógrafa carioca Luciana Whitaker lança o livro 11 Anos no Alasca (editora Ediouro), com belíssimas imagens

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Por Fabiana Caso
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Segundo história da tradição esquimó, uma mulher-foca, que tira a própria pele para poder dançar, tem seu revestimento capturado por um homem. Acaba casando-se com ele, e os dois têm um filho. Mas a foca nunca se adapta ao meio terrestre, sua pele racha e perde o brilho. Ela acaba retornando ao mar. O conto, reproduzido no livro Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés (Rocco), representa a perda da alma feminina quando há a tentativa de "forçar" a própria natureza. Foi exatamente o contrário que aconteceu com Luciana Whitaker, fotógrafa carioca de 43 anos, que acaba de lançar o livro 11 Anos no Alasca (Ediouro) - um relato, em forma de diário, sobre a vida no Ártico. Luciana estabeleceu-se na pequena vila de Barrow, com cerca de 4 mil habitantes, de 1993 a 2004. Rodeada pelo mar Ártico e pela natureza selvagem da tundra, a vila onde viveu tem casinhas coloridas de madeira. A caça à baleia é uma atividade de subsistência, e peça-chave da cultura esquimó local. Em meio a corujas, cometas, ursos polares e caribus, Luciana encontrou uma gente simples que cativou seu coração: os esquimós inupiat. Aos 31 anos, ela trabalhava havia oito anos como repórter fotográfica no Rio de Janeiro. Tinha acabado de terminar um namoro. "Queria uma mudança." Não pensou duas vezes: decidiu embarcar para um passeio de trenó no Alasca. Adorou a experiência, conheceu uma família de esquimós e decidiu esticar a viagem até a vila setentrional de Barrow. Foi onde conheceu Kelly, um norte-americano que havia crescido no local. Acabou cedendo aos convites dele para se estabelecer por lá. "Mas pensava em passar alguns meses, talvez seis", lembra. Foi fisgada, porém, pelos encantos do gelo. Já na primeira noite morando com Kelly, deparou-se com um salmão que deixaram à sua porta: uma doação anônima, prática comum na vila. "Essa cultura de repartir é o máximo. Não esperam nada de volta", conta ela, que também ficou impressionada ao notar que crianças de 6 anos brincavam sozinhas nas ruas, às 23 horas no verão. Como era vegetariana, teve de adotar novos hábitos: afinal, em Barrow, a alimentação gira em torno da carne e da gordura da baleia Bowhead. Tentou resistir, mas, numa ocasião em que passava muito frio, foi avisada pelos esquimós que só se aqueceria se comesse. "E assim foi." Poucos meses após a sua chegada, casou-se oficialmente com Kelly. Enquanto isso, o Alasca lhe rendia belas fotos, distribuídas para jornais, agências e revistas brasileiras. Acabou contratada pelo Inupiat Heritage Center (Centro da Herança Inupiat - nome do povo esquimó que habita essa região ártica) para fotografar a caça à baleia Bowhead. "Nenhuma mulher costuma ir para o gelo acompanhar a caça", conta. Como conseguiu essa proeza, foi "adotada" por um dos capitães como sua fotógrafa oficial. Apesar de sentir pena das baleias, Luciana entendeu que a prática fazia parte da cultura local. Mas nunca viu a arpoada, quando o mamífero é morto. "Não é uma matança desordenada. Para eles, é um orgulho enorme essa caça, que alimenta a cidade inteira." Uma das maiores baleias do mundo, a Bowhead, pesa dezenas de tonelada e demanda um sistema de mutirão para ser transportada, cortada e limpa. URSOS POLARES Luciana fazia todos os tipos de fotos em Barrow: para passaporte, festas de casamento, retratos, etc. Afinal, não havia lojas de fotos instantâneas. A língua falada nas ruas é o inglês, e nem todos os esquimós dominam o idioma nativo inupiaq. "Aprendi algumas palavras e frases", conta ela, que também fez diversos cursos de cultura esquimó na faculdade local. A presença do antigo e do moderno na vila a deixava intrigada. A maioria das casas de Barrow tinha internet, quando isso não era comum no Brasil, mas muitas não contavam com esgoto ou água corrente. Kelly, seu marido, era gerente do Departamento de Trânsito e houve uma época em que a vila dispunha de um sofisticado sistema de GPS para rastrear os ônibus municipais. A rota era transmitida por um canal de TV a cabo para que as pessoas saíssem de casa apenas quando o ônibus estivesse chegando. Claro, tudo para evitar o frio. O único perigo em Barrow são os ursos polares - de 2,5 metros de altura e cerca de 600 quilos. Há patrulhas que lançam tiros de artifício quando os bichos se aproximam. Se não recuam com o barulho, são lançados tranqüilizantes para dormirem. "Quando ia passear com meu cachorro à noite, ficava olhando para o chão e procurando pegadas", lembra Luciana. Mesmo assim, conseguiu clicar belas imagens de ursos polares em visita à praia: tomadas do alto de uma montanha. Por precaução, nenhum habitante costuma sair de Barrow sem uma boa espingarda. Luciana teve dois filhos com Kelly: James, hoje com 10 anos, e Juliana, de 7. Nasceram no Rio de Janeiro, mas ambos cresceram em Barrow, à maneira das crianças esquimós. Ela continuou fazendo todas as suas atividades: eram carregados nas suas costas quando pequenos. "É um sistema ótimo: quando estavam com frio, enfiavam os bracinhos no meu casaco." Além dos dois, Luciana ganhou outra filha no Alasca: Aidrianna Joy, filha do casamento anterior do então marido. Depois da morte da mãe, a adolescente foi morar definitivamente com o casal. "Ela era a minha melhor amiga lá e até hoje me chama de mãe." PAIXÃO Quando fala sobre o Alasca, Luciana sempre deixa escapar um sorriso. O curioso é que seu pai a chamava de esquimó desde a infância, pois tem maçãs do rosto salientes. "O gelo é o lugar onde eu mais gosto de estar no mundo." Uma das poucas dificuldades que sentiu em Barrow foi viver sem cinema. Mas fazia exibições de filmes em casa, com os DVDs da biblioteca local. "A locação é gratuita e tem um acervo incrível. Via até os filmes brasileiros novos." Não há luz em Barrow durante os três meses de inverno. A contrapartida são os três meses de dias contínuos durante o verão. Qual é a sensação de viver esses extremos? "No inverno, legendava fotos, fazia todas as atividades dentro de casa. Compensávamos passando o máximo tempo fora de casa durante o verão, aproveitando." Quando os filhos começaram a crescer, passou a ser difícil "hibernar" com dois pimpolhos repletos de energia para gastar. "Daí vinha passar férias no Brasil ou no México", conta. No final de 2004, Luciana decidiu voltar a morar no Brasil. Apesar de ter se separado de Kelly, ele passava longas temporadas no Rio, e ela sempre voltava a Barrow. Mas, em 2006, o ex-marido faleceu, de pancreatite - tinha apenas 43 anos. Depois de um longo período de luto, ela retornou a Barrow. E o amor pelo local ficou renovado. Atualmente, vai para lá pelo menos três vezes por ano: fotografa bastante para corporações e para o governo local. "No mês que vem, vou passar uma temporada lá com meus filhos", anuncia, entusiasmada. Agora consegue até sentir um certo "ventinho quente" de primavera, numa temperatura de 20º C negativos. Coisa de quem se adaptou à vida polar e encontrou uma pele de foca do tamanho do seu contentamento.

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