Publicação eletrônica e a pobreza intelectual

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Por Fernando Reinach
Atualização:

"Fernando, me arranja um link legal sobre Amazônia? Luciene." Recebo toda semana e-mails como esse. São estudantes tentando escrever um trabalho escolar. Enviar e-mail é mais fácil do que pesquisar no Google e, com sorte, basta copiar o conteúdo do "link legal" e entregar ao professor. Até 1980 isso era impossível. Um estudante ou um cientista em busca de informação tinham de fuçar nas bibliotecas. Os catálogos, em papel, eram incompletos e mal-organizados. Logo, as mesas se entulhavam de volumes a serem vasculhados manualmente. Era necessário ler muito para localizar a informação desejada. Hoje os mecanismos de busca nos levam diretamente para a informação. Livros e revistas acadêmicas estão digitalizados e disponíveis na internet. Não há dúvida de que a publicação eletrônica facilita a localização de dados, mas muitos afirmam que isso provoca certa pobreza intelectual. Para esses críticos, a obrigatoriedade de lidar com informações mal-organizadas forçava cientistas e estudantes a ler grande diversidade de conteúdos antes de encontrar o que buscavam. Na estante de livros sobre a Amazônia, Luciene encontraria obras sobre o mito das guerreiras amazonas (que extirpavam uma das mamas para melhor carregar suas lanças), gravuras de pássaros e narrativas de exploradores. Hoje, quando coloco "amazonas" no Google, o primeiro link é a Wikipedia, onde Luciene pode saciar suas necessidades escolares. No passado, 20 alunos, após uma tarde numa biblioteca, produziam 20 trabalhos diferentes. Hoje, 20 alunos na frente do computador provavelmente vão produzir 20 versões do verbete da Wikipedia. Você deve imaginar que estou ficando velho, mas um cientista usou recentemente um banco de dados com 34 milhões de trabalhos científicos para comparar a produção científica de antes e depois do advento da digitalização. Como cada trabalho científico traz no seu final as fontes consultadas, foi possível comparar a diversidade antes e depois. Por meio de análise quantitativa, ele demonstrou que a digitalização diminuiu muito a diversidade das fontes e o período histórico coberto pelas citações. Em outras palavras, a erudição (conhecimento mais amplo do campo de trabalho e sua inserção no universo do conhecimento humano) diminuiu nas últimas décadas. O assunto é polêmico, mas o interessante é que pela primeira vez foi feita análise quantitativa do efeito da digitalização sobre a diversidade e erudição da comunidade científica. Se por um lado isso confirma a intuição de muitos educadores, é preciso lembrar que o estudo somente foi possível porque toda a produção foi digitalizada. Também é bom lembrar que, caso o professor de Luciene saiba usar o Google, ele pode descobrir de onde ela copiou seu trabalho e, então, basta exigir de Luciene maior diversidade de fontes. Nos próximos anos talvez Luciene venha a pedir por e-mail a opinião de um chefe indígena sobre sua vida na Amazônia, algo impossível em 1980. *Biólogo - fernando@reinach.com Mais informações em: Electronic publication and the narrowing of science and scholarship. Science, vol. 321, pág. 395, 2008.

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