O grande acordo em torno da evolução

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Por Robert Wright
Atualização:

A "guerra" entre ciência e religião é significativa pelo grau considerável de desobediência civil de ambas as partes. A maioria dos cientistas e dos crentes recusa envolvimento no conflito. Mas a guerra continua e não é questão secundária. Há pessoas de ambas as partes que defendem posições sérias e conflitantes. Há ateus que insistem que tudo o que se diz a respeito da existência de Deus é incompatível com uma visão de mundo científica. E há crentes que insistem que a evolução não pode explicar totalmente a criação do homem. Mas agora surge uma boa notícia: há muito mais em comum entre esses grupos, e não por ambos estarem errados, mas por estarem errados pela mesma razão. O fato de subestimar o poder criador da seleção natural turva a visão não só do religioso, mas também do ateu militante. Se ambos aceitassem esse poder, os crentes poderiam aceitar reduzir o papel de Deus na criação e os ateus, aceitar que noções de um "propósito elevado" são compatíveis com o materialismo científico. Os crentes que precisam desse sermão não aceitam apenas um "propósito inteligente", que nega que a seleção natural pode explicar a complexidade biológica. Há os que fazem objeções menores à posição darwiniana. Aceitam que Deus usou a evolução para criar, mas acham que ele precisou fornecer ingredientes especiais. Talvez o mais citado seja o senso de que existe certo e errado. Até crentes que se dizem darwinianos afirmam que o senso moral desafiará sempre o poder de explicação da seleção natural e deixará um lugar para Deus na criação. A ideia remonta a C.S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, que influenciou muitos intelectuais cristãos da geração atual. Lewis disse que a evolução pode ter tornado o homem capaz de um comportamento correto. Mas a evolução não poderia explicar o motivo pelo qual o homem julgaria um comportamento correto como "bom" e um mesquinho como "mau". A incapacidade de explicar essa apreensão seria evidência de que a lei moral existe e, portanto, prova da existência de Deus. Desde que Lewis escreveu tudo isso, os psicólogos evolucionistas chegaram a uma explicação plausível do senso moral. Dizem que é uma forma de a seleção natural dotar as pessoas para que façam jogos que podem ter vantagens para ambas as partes, se os jogadores cooperarem, ou desvantagens, se não cooperarem. Portanto, o sentimento de culpa por trair um amigo está em nós porque, durante a evolução, alimentar a amizade trouxe benefícios por meio da lógica do " uma mão lava a outra" ("altruísmo recíproco"). O desenvolvimento das pessoas que não têm amigos tende a ser afetado. Essa dinâmica fez com que tendêssemos a crer em princípios abstratos, como a ideia de que as boas ações deveriam ser premiadas e as más, punidas. Essa notícia pode parecer um tanto esdrúxula para os fãs de Lewis, mas eles não precisam se afastar desse cenário. Talvez possam aceitar essa história da evolução e mesmo assim aderir a conceitos de um propósito moral determinado por Deus. Para eles, o primeiro passo rumo a esta teologia mais moderna é aceitar que Deus fez seu trabalho indiretamente - que seu papel no processo acabou quando ele desencadeou o algoritmo da seleção natural. Evidentemente, afirmar que Deus confiou a obra criadora à seleção natural pressupõe que, uma vez desencadeada, a seleção natural o concluiria; que a evolução produziria uma espécie que, em seus aspectos essenciais seria como a espécie humana. Mas essa afirmação, embora especulativa, revela-se cientificamente plausível. Para começar, muitos biólogos evolucionistas creem que a evolução acabaria por criar uma espécie inteligente, capaz de se comunicar, sociável, mais ou menos com nosso nível de complexidade linguística. E quanto às possibilidades de uma espécie com senso moral? Aparentemente, ele surge sempre que pegamos uma espécie inteligente e fluente e infundimos nela o altruísmo recíproco. A evolução mostrou-se suficientemente criativa para utilizar repetidas vezes essa lógica. Morcegos vampiros compartilham sangue e golfinhos trocam favores, assim como macacos. Será tão improvável que, mesmo que os humanos tivessem se extinguido, uma espécie dotada de altruísmo recíproco acabasse alcançando um nível intelectual e linguístico no qual este altruísmo fomentaria instituições e um discurso moral? Já existe um bom candidato para esse papel: o chimpanzé. Segundo alguns especialistas em primatas, eles têm os rudimentos de um senso de justiça. Às vezes parecem mostrar indignação moral, "queixando-se" com outros porque um aliado não cumpriu as condições de um relacionamento reciprocamente altruísta. Mesmo agora, se os chimpanzés estão evoluindo para uma inteligência maior, sua trajetória evolutiva pode estar convergindo para as mesmas intuições morais para as quais a evolução humana convergiu. Se a evolução tende a "convergir" para certas intuições morais, isso acaso significará que existem desde o início normas morais - que a seleção natural não "inventou"? Algo desse gênero foi sugerido pelo psicólogo evolucionista Steven Pinker. Ele observou que a interação da intuição evoluída e da dinâmica do discurso tende a criar um acordo de que deveríamos tratar os indivíduos como esperamos ser tratados. Comparando essas verdades morais a verdades matemáticas, ele disse que talvez "sejam verdadeiras independentemente da nossa existência". O ateísmo de Pinker mostra que pensar nesses termos cósmicos não nos leva inexoravelmente a Deus. O cenário teobiológico de que Deus dá início à seleção natural com a confiança de que ela levaria a uma espécie moralmente rica e reflexiva apresenta elos bastante especulativos em sua cadeia. Mas a questão é que essas especulações são compatíveis com a teoria científica comum da criação humana. Se os que creem as aceitassem, isso acabaria com o conflito entre religião e o ensino da biologia evolucionista. E a teologia teria feito o que já fez: evoluiria - adaptaria sua concepção de Deus ao avanço do conhecimento e à simples lógica. Mas os que creem não são os únicos que poderiam usar certa adaptação. Alguns dos ateus precisarão fazer concessões à lógica, como reconhecer que um deus cuja ação criadora acaba com o início da seleção natural é, em sentido estrito, compatível com o darwinismo. William James disse que a crença religiosa é "a crença numa ordem invisível, e que nosso bem supremo está em ajustar-nos harmoniosamente a ela". A ciência tem sua própria versão da ordem invisível, as leis da natureza. Em princípio, os dois tipos de ordem podem se harmonizar - e nesse ajuste também pode estar um bem supremo. *É membro sênior da New America Foundation e autor de The Evolution of God

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