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Nova ortografia, novos desafios

Regras do acordo ortográfico, vigente desde o dia 1.º, deveriam simplificar a escrita, mas as exceções são muitas

Por José Maria Mayrink
Atualização:

Em caso de dúvida, consulte-se o pai dos burros, nome dado ao dicionário na linguagem coloquial. Agora escrito sem hifens, conforme a nova ortografia, que aboliu esse diacrítico ou sinal gráfico do pai-dos-burros, assim registrado por Antônio Houaiss, Aurélio Buarque de Hollanda, Caldas Aulete e outros renomados mestres da escrita correta. O acordo ortográfico da língua portuguesa - tratado internacional que foi assinado em 1990 e começou a vigorar no primeiro dia de 2009, com quatro anos de tolerância para ser aplicado - veio alegadamente para simplificar, mas não está sendo fácil entender suas normas. Os critérios de mudança obedecem a razões históricas, culturais e filológicas que só os estudiosos são capazes de interpretar com acerto. Veja o guia com as principais mudanças do acordo ortográfico em O pai dos burros mais simples será o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que a Academia Brasileira de Letras (ABL) publicará pela Editora Global (o lançamento está marcado para 2 de março), com cerca de 370 mil palavras - uma em cada linha, só com a classificação gramatical, sem o significado, que se encontra nos dicionários. Preparado pela equipe de lexicógrafos da ABL, com supervisão do professor e acadêmico Evanildo Bechara, a obra terá tiragem inicial de 10 mil exemplares. Além da edição impressa, haverá uma versão que poderá ser consultada pela internet. "Ampliamos a 4ª edição do Vocabulário Ortográfico, publicada em 2004", informa Bechara, mostrando o volume de 840 páginas e 360 mil palavras que serviu de base para a atualização. A primeira edição, lançada após a reforma ortográfica de 1943, tinha 60 mil palavras. "Os usuários mais interessados do Vocabulário Ortográfico serão universidades, órgãos públicos e departamentos de língua e literatura portuguesas no exterior", prevê Jefferson Alves, diretor da Global. A editora esperava começar a paginação e diagramação amanhã, mas Bechara pediu prazo de mais dez dias para fazer alguns acertos. A edição brasileira poderá ser utilizada por mais países, pois não se tem notícia de que alguma outra esteja sendo preparada. Como Portugal se deu seis anos para aplicar o acordo, a Academia das Ciências de Lisboa ainda não falou em vocabulário. Editoras e linguistas trabalham também na adaptação de seus dicionários, enquanto professores e filólogos lançam livros sobre as novas regras. Pioneira nessa iniciativa, a ABL lançou em outubro, pela Companhia Editora Nacional, o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, com uma tiragem de 10 mil exemplares. Ainda disponível nas livrarias, a obra será relançada dia 15, desta vez com 20 mil cópias, para corrigir um erro de interpretação do acordo. Foram grafadas com hífen 21 palavras com o prefixo re antes da letra e - de reeditar a reexaminar - que devem ser escritas sem hífen. A gerente editorial, Célia de Assis, atribui o equívoco ao vaivém das correções. "Entendemos que, como no caso do prefixo co previsto pelo acordo, também os prefixos re, pre e pro dispensam o hífen, mesmo quando o segundo elemento se inicia por e ou o", disse Bechara. Autor de dois livros sobre a questão - A Nova Ortografia e O que muda com o Novo Acordo Ortográfico - o professor dá uma longa lista de exemplos de exceções à regra geral, segundo a qual se deve usar o hífen quando a vogal do prefixo se repete no segundo elemento, como em micro-ondas. No caso de encontro de uma vogal com a letra h, elimina-se o h, como na palavra coabitar. Há palavras nas quais a eliminação do h parece estranha. O exemplo mais gritante é o substantivo e adjetivo coerdeiro, que passa a ser escrito dessa maneira, quando antes se grafava co-herdeiro. A mudança é tão estranha que até o Dicionário Escolar da ABL mantém a forma antiga, com hífen, outra falha que terá de ser corrigida na próxima edição. Mais ainda: o próprio texto oficial do acordo ortográfico usa a palavra co-herdeiro, com hífen, embora o acordo anterior, de 1986, que lhe serviu de base, tenha dado preferência à forma coerdeiro. "Nós não inventamos nada, a Academia apenas aplicou a regra adotada para o prefixo co, que, nesse caso, derruba o h e elimina o hífen, como na palavra coabitar, porque se trata do encontro de duas vogais, ou de uma vogal com h", disse Bechara. Será preciso prestar muita atenção para a aplicação das regras, sobretudo no emprego do hífen, porque usar ou não esse sinal gráfico depende, muitas vezes, do sentido dos termos separados por ele. Escreve-se, por exemplo, afro-brasileiro com hífen, mas afrodescendente sem hífen, porque neste caso o prefixo afro é empregado como adjetivo. "Os afro-brasileiros (substantivo) são afrodescendentes (adjetivo)", assim apareceria o afro numa mesma frase. "O problema do hífen é o maior desafio. Cada diacrítico (sinal gráfico), como o acento agudo, o grave, o circunflexo, tem uma função específica. Ao hífen atribuíram-se várias funções: fonética, gramatical, semântica, estilística", reconhece Bechara, prevendo dificuldades que os gramáticos terão de resolver. Mesmo os pais dos burros - os dicionários e vocabulários -, terão de ser frequentemente atualizados. O acordo ortográfico tem regras mais simples quando se trata de acentuação, porque elas apenas acabaram com os acentos de palavras como para (que se escrevia pára, na forma verbal) ou como os paroxítonos ideia, jiboia, europeia e heroico, que perderam o acento agudo nos ditongos ei e oi. No entanto, o substantivo herói continua com o acento, embora tenha o mesmo ditongo aberto, porque é oxítono. A reforma acabou com os acentos diferenciais, com duas exceções: o infinitivo pôr, para não se confundir com a preposição por, e o pretérito perfeito do indicativo pôde, para se distinguir de pode, no presente do indicativo. Há também palavras em que o acento é opcional, como fôrma, que não deve ser confundida com forma (substantivo) nem com forma do verbo formar. Bechara admite as duas grafias, mas adverte que só se deve usar fôrma, com acento gráfico, nos casos de ambiguidade. O acadêmico cita, como exemplo, versos do poema Os sapos, de Manuel Bandeira: "Reduzi sem danos/ A fôrmas a forma." Opcional, mas o Dicionário Escolar da ABL registra apenas fôrma, com o sentido de molde e de utensílio de cozinha. "O contexto poderia resolver quase todas as dúvidas, com exceção dos casos pôr e pôde", afirma o acadêmico responsável pela aplicação do acordo ortográfico. Para ele, a tônica da reforma deve ser a simplificação. Numa frase como "o coração não é a sede da vingança" não se vai usar o circunflexo, embora a palavra sede possa significar tanto a vontade de fazer vingança como o lugar em que se fixa o desejo de vingança. Simples mesmo foi a eliminação do trema, riscado de vez das palavras portuguesas, devendo ser usado apenas em nomes estrangeiros, como Bündchen. A falta do acento não influencia na pronúncia. "Machado de Assis escrevia linguiça, mas com certeza pronunciava lingüiça, separando u e i, como se houvesse trema", disse Bechara. Ao restituir ao texto a função explicativa, com a dispensa do acento diferencial, o acordo estendeu essa função às locuções. Dia a dia é uma locução que agora se escreve sem hífen, seja adverbial (que já se escrevia sem hífen) ou substantiva (o seu dia-a-dia, com hífen). Outro exemplo é a expressão à toa - agora assim -, que não tinha hífen como advérbio e tinha como adjetivo.

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