Nas asas do glamour

Prestativas e deslumbrantes. Assim eram as aeromoças dos anos dourados da aviação

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Por Vera Fiori
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O compositor Billy Blanco dedicou uma canção a elas, Aeromoça, eternizada na voz de Dick Farney, e que por sinal foi casado com uma ex-aeromoça. A Panair, uma das mais prestigiadas empresas brasileiras, inspirou Milton Nascimento e Carlos Drummond de Andrade. Em 1950, a profissão dos "anjos da guarda" da aviação perdia somente para a de modelo e estrela de cinema. Quer fetiche maior do que máquinas voadoras e lindas mulheres ? A Branniff, visionária companhia texana, contratou o estilista Emilio Pucci entre1965 e 1974 para repaginar o uniforme de suas hostess, como as aeromoças eram chamadas. Foi uma revolução fashion e tanto. Muitas cores, muitas mínis, muitas botinhas de verniz. Apenas o uniforme batizado de Gemini 4 não animou as moças. Ele era composto de um incômodo capacete em forma de bolha transparente, homenagem aos astronautas. Nas asas da Braniff, outras companhias copiaram a moda e logo as principais maisons emprestavam seus nomes aos uniformes de bordo. No Brasil, o costureiro Amalfi criou entre as décadas de 1980 e 1990, uniformes para as principais companhias, como Varig, Transbrasil, TAM e Aerolíneas Argentinas. As criações mais ousadas eram para a Transbrasil, que exibiam as cores do arco-íris na cauda dos aviões. "Azulão, laranja, amarelo, lilás, rosa eram as cores mais usadas. Altas, esguias, lindas, elas vestiam muito bem um conjunto que criei de pantalona e turbante. Naquela época, cada companhia tinha a sua miss. Eram tempos glamourosos", conta Amalfi, também responsável pela supervisão do make up e cabelo das moças. Os passageiros, por sua vez, eram mais formais e cuidadosos com o visual. Homens de negócios usavam terno e gravata e as mulheres preferiam os tailleurs. Embarcar de jeans e camiseta, nem pensar. Em tempos de turismo de massa, globalização e apagões aéreos, o glamour, os bons modos e o requintado serviço de bordo ficaram para trás. Voar perdeu o encanto, transformando-se num meio de transporte qualquer. Passageiros embarcam com desodorante vencido, camiseta regata, bermuda, chinelos e esticam os pés no encosto da frente. SONHO DE INFÂNCIA Sorriso estampado no rosto, maquiagem caprichada, uniforme e cabelos impecáveis, quando se olha para elas, imagina-se quanto tempo não devem levar para se arrumar. "No começo eram duas horas, hoje em uma hora ?já? estou pronta'', conta a bela morena Mariane Iori, de 25 anos, solteira, comissária da Varig. Antes de embarcar, enquanto coloca os pés para cima por dez minutos para ativar a circulação, vai se maquiando. Nutricionista, não sucumbiu às reminiscências de infância, quando a família a levava para o típico programa paulistano de ver os aviões em Congonhas. "Trabalhava numa empresa de alimentação que servia os vôos e ficava fascinada quando entrava nos jatos das companhias." Não deu outra: o mercado perdeu uma nutricionista e ganhou uma comissária dedicada. Jogo de cintura, diz ela, é essencial na profissão. Entre os percalços, lembra a história de um passageiro rebelde, que fumava no banheiro e que deu um show ao ser flagrado. "Nessas horas é preciso ser firme." MILHAS ACUMULADAS Comissárias não trocam de profissão por nada nesse mundo, e bons motivos não faltam, apesar da rotina puxada. Em um dia podem assistir à estréia de um musical na Broadway, em outra semana estão batendo pernas em Paris, ou na Suíça, saboreando um sanduíche de salmão no café da manhã, como relembra Alice Klausz. Gaúcha, solteira, 80 anos e na ativa - é voluntária da Marinha nos vôos da FAB à Antártica - trabalhou por 35 anos na Varig e até hoje é uma referência como diretora das primeiras turmas de aeromoças da empresa. "Quando comprou o avião Constellation, que inaugurou a rota Brasil-Nova York, o senhor Ruben Berta (fundador da Varig) me mandou à Suíça para estudar, a fim de implantar a primeira escola de comissárias no Brasil. Fiz a volta ao mundo com a Swissair, aprendendo e observando os costumes de cada país. Eram tempos maravilhosos. Estava apaixonada e me lembro até hoje do hotelzinho na Suíça, onde pedi salmão no café." Com senso de humor e língua afiada, não poupa críticas aos novos tempos: - Hoje a aviação parece transporte de gado. As pessoas embarcam de bermuda, uma falta de respeito com o próximo. Quanto ao serviço de bordo, ouve-se disparates do tipo "vai querer uma Coca?" Isso são modos de se dirigir ao passageiro? Alice voou duas vezes com o presidente Juscelino Kubitschek, com Costa e Silva e João Goulart. Sobre este último, relembra uma viagem, quando tiveram de sobrevoar Washington a uma altitude baixa. "A primeira-dama Tereza Goulart começou a enjoar e contaminou toda a tripulação. Enquanto uns corriam para o banheiro, outros lhe davam assistência. Foi um sufoco!", conta, entre risadas. Responsável pela reformulação da comida servida a bordo nos vôos do Programa Antártico, Alice é um exemplo de vida para muita garota de 20 anos. À bordo dos aviões Hércules C-130, atingiu a marca de 143 vôos ao continente gelado, inclusive na recente comitiva do presidente Lula, muitas vezes enfrentando temperaturas de até 40 graus negativos . E quando não está na terra dos pingüins? "Gosto de ler e ouvir música, como Ray Conniff, Richard Clayderman e a minha preferida, Ave Maria no Morro." Outra veterana é Zdenka Cerny, de 71 anos, que trabalhou cinco anos na Vasp e 23 na Transbrasil. Chegou da Tchecoslováquia em 1961, trabalhou como feirante e depois numa loja, até que viu um anúncio da Vasp, que procurava comissárias. Sobre a profissão ontem e hoje, lembra que antigamente não havia uma regulamentação: - Os vôos atrasavam, chegávamos tarde da noite, e o jeito era se hospedar num hotelzinho em frente ao aeroporto de Congonhas, para dormir, engomar a roupa e, no dia seguinte, se apresentar à companhia, nem que fosse às 5 da manhã. O lado bom era o respeito e a valorização da aeromoça, profissional de status e sempre convidada para eventos importantes. Também a comissária aposentada da Transbrasil, Tancy Aguiar Mavignier, de 52 anos, compara a fase áurea da profissão, nos anos 1980 e 1990, com os dias atuais: - Antes a tripulação ficava até uma semana em cada país, hospedada em hotéis cinco estrelas. E os salários, o equivalente a R$ 6 mil, compensavam. Os passageiros eram mimados com uísque, caviar, queijos finos. Hoje as comissárias fazem até cinco, seis pousos num dia, e o salário é menor. Em função do barateamento das passagens aéreas, o máximo que se pode esperar do serviço de bordo é uma barrinha de cereais. Segundo ela, a experiência dos veteranos deveria contar pontos na profissão. "Sinto que as mais jovens se apavoram facilmente com algum problema técnico a bordo, quando justamente deveriam transmitir segurança aos passageiros", comenta, lembrando uma ocasião em que sentiu um forte cheiro de fumaça e, sem que percebessem, chamou o chefe da equipe e tudo se resolveu sem pânico. ÀS COMPRAS Aposentada, casada, mãe de dois filhos, Izabel Morishito Costa, de 57 anos, começaria tudo de novo. Depois de trabalhar um ano na Varig, ela foi para a Transbrasil, onde permaneceu de 1974 a 2001. Graças à profissão, aprimorou o inglês, conheceu cerca de 30 países, levou o marido e os filhos para viajar com as passagens que ganhou e se esbaldou nas compras. "Esperava as liquidações e abastecia o guarda-roupa na Zara, Mango, Nike, lojas que ainda não estavam aqui." Os uniformes fashion também deixam saudades. "Na Varig, usávamos um amarelo e outro abóbora, do costureiro Courrèges, acinturados e com recortes, na linha futurista. O traje era completo, com luvas, sapatos e bolsas marrom café." Na Transbrasil, Izabel pegou a fase das pantalonas "enormes" de Amalfi. Levava uma hora e meia para se produzir, e o ponto de encontro das garotas era num salão de beleza em Congonhas, onde faziam a maquiagem, com direito a cílios postiços, como pedia a moda. Tempos diferentes, relembra, quando os passageiros podiam escolher entre uma dezena de marcas de licores, e pediam um uísque com água de coco, hit dos anos 70. Por sinal, o consumo free de bebidas também costumava causar pequenas turbulências a bordo. "Nessas horas tinha uma tática infalível. Chegava no ouvido do fanfarrão e, com voz firme, dizia que não serviria mais bebida, a não ser que ele quisesse ser desembarcado na próxima escala." Pito suficiente para o passageiro sossegar. JOGO DE CINTURA Quando tinha 7 anos, lá em Rolândia, interior do Paraná, Luciane Tonon, comissária da TAM, costumava se deitar no chão, abrir os braços como asas de avião e, olhando para o céu, se imaginava a bordo. Formou-se em Jornalismo e Educação Física, e seguiu a primeira carreira. "Um dia, lendo uma reportagem sobre comissárias, resolvi me inscrever num curso. O que muita gente não sabe é que, além das aulas de etiqueta e maquiagem, as provas de sobrevivência no mar e na selva nada têm de glamourosas. São bem duras." Já o feeling é algo que se adquire na prática. Quando recepciona os passageiros na porta do avião, só de olhar, já detecta aqueles com potencial de encrenca a bordo. "As celebridades, às vezes, se acham no direito de fazer o que querem, mas nós procuramos tratá-las da mesma forma que todos os passageiros, muito bem por sinal, mas sem deixar de prezar pela segurança do vôo. Mesmo que tenham chiliques, as normas e os procedimentos existem para serem cumpridos." E lembra de um caso: - Um ator, que estava na classe econômica, queria de todo jeito um up grade para a classe executiva, mas nós não temos autonomia para isso a bordo. O procedimento só é feito em terra. Inconformado, começou a gritar: "você sabe quem eu sou? Com quem está falando?" Tentou todos os argumentos e, quando viu que não conseguiria, começou a fazer motim com os passageiros do lado, dizendo que divulgaria na imprensa, que era um absurdo um ator conhecido como ele não poder viajar na executiva. Assim ele passou boa parte do vôo falando mal da companhia. E quando os comissários flagram um casal mais afoito a bordo ou que usa o minúsculo toalete para encenar uma cena erótica, o que fazer? - Sempre tem aqueles casais com fetiches. Procuramos evitar que situações como essas aconteçam, como, por exemplo, não deixar que entrem duas pessoas no toalete. Quando percebemos algo mais caliente na cabine de passageiros, orientamos o casal no sentido de que eles estão em público e que temos crianças a bordo. Entre as coisas curiosas que acontecem, o "desejo coletivo" é algo corriqueiro. "Quando um passageiro pede suco de pêssego, por exemplo, pode apostar que todos vão querer." Portanto, se um dia ouvir uma comissária falar em código com um colega: "Mike Victor, Mike Quebec", significa: "macaco vê, macaco quer." Luciane coleciona este e outros episódios divertidos do cotidiano em crônicas que escreve para o jornalzinho da tripulação.

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