PUBLICIDADE

Lição de vida

De dona de casa a mochileira: uma virada pessoal que rendeu livro

Por Ciça Vallerio
Atualização:

Na data de seu aniversário de 80 anos, dia 9 de agosto, Ignez Baptistella lançou Voo Livre - A História de uma Mulher que Ousou Enfrentar o Mundo. Seu livro serviu como uma resposta para as muitas pessoas que a criticaram e a chamaram de louca. Motivo: ela, uma dona de casa, mãe de seis filhos, deu um basta no casamento de 27 anos, aparentemente perfeito, abdicando de vida confortável para simplesmente viver - e destituída dos bens e pensão.

 

PUBLICIDADE

Com os rebentos bem-criados, aos 50 anos, ela juntou o pouco que tinha e rumou para Londres com a intenção de estudar inglês. Para quem vivia em função da família, a decisão de virar a mesa foi um ato de heroísmo. Além da enxurrada de críticas, a cidade onde morava (e mora atualmente), Araras, interior de São Paulo, ficou em polvorosa. Ignez foi excluída da sociedade, da família e ainda foi tachada de louca.

 

Ela, porém, não se intimidou e se mandou para a Europa com uma mochila nas costas, sem saber uma palavra em inglês. Com coragem e determinação, matriculou-se em uma escola e passou a se manter com bicos. Fez de tudo: de babá a faxineira. Com o que ganhava, viajou por vários países, sempre sozinha. Tirou certificado de proficiência em inglês pela conceituada Universidade de Cambridge.

 

Após quase 10 anos na estrada, Ignez volta ao Brasil e até hoje se sustenta dando aulas particulares do idioma. É essa história - inspiradora - que ela conta em seu livro.

 

 

Como foi essa virada?

 

Foi como um telhado que precisava de reparos. Cada vez que chovia, havia goteiras por toda a parte, até que um dia a casa caiu. Meu marido me via apenas como uma serviçal. Tudo na casa tinha que estar perfeito. Se faltasse um botão ao vestir a camisa, comprava uma guerra por mais de uma semana. Se faltasse cerveja na geladeira, a guerra era maior, e assim por diante. Uma vez, me lembro muito bem, tirei tudo do armarinho do banheiro para uma boa limpeza, ao voltar as coisas para o lugar, me atrapalhei com as escovas de dente que eram oito! Ele me chamou como se eu tivesse cometido um crime. Naquele dia eu quis morrer!

 

Publicidade

 

O desgaste impulsionou a sua transformação?

 

Lentamente, tropeçando nos acidentes, fui me distanciando do homem com o qual eu havia me casado por amor. Se por muitos anos aceitei as coisas como eram, achando que deveriam ser assim mesmo, aos poucos, comecei a cobrar dentro de mim meus direitos. Confesso que muitas vezes tive vontade de fugir. Mas ir para onde com seis filhos pequenos e sem dinheiro? Sem perceber, comecei a alimentar o sonho de ser livre e recomeçar minha vida.

 

 

De onde veio essa sua coragem?

 

A vontade de me separar veio da vontade de viver! Eu era saudável, sempre me levantei junto com o sol, podia trabalhar, não ficaria debaixo de uma ponte, tampouco esperaria que as coisas caíssem do céu.

 

 

A senhora conta que foi tão criticada que até acreditou nisso e resolveu se internar em uma clínica psiquiátrica. Por quê?

 

Fui tantas vezes chamada de louca! Nosso médico de família chegou a dizer a meu marido que a mulher, ao passar pela menopausa, pode ter um comportamento estranho, mas que aquilo passaria. Talvez eu estivesse ficando louca mesmo, pensei. Pedi para ser internada na Granja Julieta, em Santo Amaro (bairro paulistano), uma clinica psiquiatra. Àquela altura, eu já tinha decidido sair do casamento, mas queria o certificado de louca ou de sã.

 

 

O livro foi uma resposta àqueles que a picharam?

Publicidade

 

A principio, eu escrevia um relatório, era o meu legado aos filhos, nem eles sabiam o que havia sido minha vida, porque nunca haviam me questionado. Se não tinha valores reais para lhes deixar, eu tinha uma história. Foi para meu filho Eduardo que um dia contei o que estava escrevendo, e ele me pediu para lhe entregar quando terminasse. Ele pegou o manuscrito e entregou ao jornalista Sergio Kombaiashi, que amou. Hoje o livro é uma resposta aos que me apedrejaram

 

 

Outro motivo para a sua mudança radical foi a sexualidade reprimida?

 

Se havia sexualidade reprimida, por outro lado era bem mais forte a sede de saber e o autoconhecimento. Quem era eu? Onde fiquei no contexto da minha vida? Sufocada entre paredes, dando conta de um trabalho exaustivo sem reconhecimento, sem dia livre, férias e muito menos remuneração. Despertei do meu estado de hibernação para me levantar e enfrentar o mundo.

 

 

A senhora conta discretamente no livro que teve seu primeiro orgasmo aos 52 anos. Como foi descobrir a sexualidade na maturidade?

 

A mulher deve cobrar a si própria o direito de sentir prazer numa relação sexual. Eu me casei num tempo em que tudo era pecado. Casei virgem e inocente. Tive seis filhos, e não conhecia meu corpo! Sexo era tido como rotina, obrigação de esposa. Achava que devia ser assim mesmo e, sempre ocupada com as crianças, deixei o tempo passar. Com os filhos crescidos, o panorama mudou. Eu me encontrei, mas estava acorrentada a princípios do tempo da minha avó.

 

 

Não são muitas pessoas que viajam sozinhas, ainda mais quando se tem mais de 50 anos. Qual foi a lição que tirou dessa experiência?

 

Viajar sozinha foi a coisa mais natural que me aconteceu. Quando criança, sempre estudei sozinha, nunca tive ninguém por perto nos melhores momentos da minha vida. Entrei sozinha na igreja no dia do meu casamento e vivi sozinha 27 anos dentro de um casamento. Minhas colegas não se interessavam por viagens ou por ampliar conhecimentos, elas queriam mesmo era ter um namorado. Gosto de dizer que eu programava minhas viagens consultando mapas ou buscando informações em agências de turismo, mas escolhia o meu caminho de ônibus, trem ou avião. Ficava em hospedarias para estudantes ou hotéis familiares. Viajar sozinha é voar livre, ter oportunidade de conhecer pessoas e lugares, demorar aqui ou ali, ir e voltar livremente. É uma oportunidade para saber que somos capazes, que somos maiores que a própria pequenez.

Publicidade

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.