Compra, mãe!

Uma publicitária questiona a ética da propaganda com o documentário 'Criança, a Alma do Negócio'

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Por Vera Fiori
Atualização:

Parece piada, mas não é. As crianças não sabem identificar uma reles minhoca, muito menos distinguir um ganso de uma avestruz, nem os vegetais que consomem todos os dias, como berinjela, pimentão e batata doce. Porém, é impressionante a rapidez com que reconhecem as embalagens de salgadinhos e logomarcas de celulares, e também a capacidade para decorar um comercial inteiro da personagem Moranguinho. Os nomes estão na ponta da língua, afinal, segundo uma pesquisa americana, bastam 30 segundos para uma criança fixar uma marca. Uma menina diz que gostaria de morar num shopping e, outra, de trabalhar na Disney. Já um menino de uns 7 anos fala que, se tivesse dinheiro, compraria um automóvel, o Fox.

 

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Essas são algumas cenas impactantes do documentário Criança, a Alma do Negócio, sobre os efeitos da publicidade nos pequenos. Dirigido e roteirizado pela cineasta Estela Renner, com produção executiva de Marcos Nisti, o filme de 48 minutos, que já foi exibido na TV Cultura e no Canal Futura, está disponível na internet - tanto no site do Instituto Alana (www.alana.org.br) como no You Tube, onde teve mais de 50 mil acessos. Segundo Estela, a produção do documentário abriu mão dos direitos autorais para que o maior números de interessados - pais, educadores e público em geral - tenha acesso ao filme, um convite à reflexão sobre hábitos alimentares, consumismo e erotização precoce.

 

Formada em publicidade pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e em teatro pela Escola de Arte Dramática de São Paulo, Estela é diretora da Margarida Filmes e atualmente vive entre São Paulo e Nova York. Ao lado de Tadeu Jungle, diretor de cinema e publicitário, dirigiu a série Amores Expressos. Assinou vários curta-metragens em película, games e comerciais. Apesar de ser mãe de três crianças de 7, 5 e 2 anos, o que a aproximou do tema foi o trabalho da amiga Ana Lucia Vilela, pedagoga que está à frente do Instituto Alana, ONG que mantém um projeto dedicado ao estudo da relação entre criança e consumo. "Dei a ela de presente de casamento um curta-metragem sobre a campanha mundial Desligue a TV, e passei a registrar algumas videoaulas com os conselheiros do Alana, quando tive um contato mais profundo sobre a publicidade infantil."

 

Segundo dados do IBGE, a criança brasileira passa quase cinco horas em frente à TV, quando é bombardeada por comerciais que plantam desejos muitas vezes inatingíveis, caso de famílias que não têm nem o que comer. "Nenhum pai quer que um estranho aborde o seu filho. É o mesmo com a publicidade, que usa as crianças como promotores de vendas", compara a cineasta. Estela conta que passou, então, a assistir à TV com olhos críticos, surgindo a ideia de fazer o documentário. "Consultei livros que estudam a relação da mídia com o universo infantil, e conversei com especialistas de diversas áreas até formatar o documentário. Com exceção de uma menina de 13 anos, grávida pela segunda vez, foram entrevistadas mães e crianças de 4 a 11 anos, totalizando 100 horas de gravação. "Muita coisa ficou de fora - a internet, inclusive -, mas acho que, nessa primeira abordagem, foi possível focar pontos críticos num espaço de tempo ideal."

 

VERBO TER

Criança, a Alma do Negócio dá voz a diferentes classes sociais de São Paulo, metrópole com um recorte representativo de perfis familiares. "O discurso que permeia os depoimentos, independentemente da classe social, é o mesmo: o ter sobrepujou o ser. Dói ouvir relatos como o da mãe que se endividou para comprar um brinquedo que foi usado duas ou três vezes. Em uma casa simples, onde se vê paredes descascadas, a garota mostra um jet ski estacionado no quintal e a coleção de celulares." Uma mãe de cinco filhos, desempregada, lembra que a criança é vulnerável, e que a publicidade se vale sempre da turminha de amigos para vender a sandália da moda, como condição para se fazer parte de um grupo. Seu parecer é endossado por um dos especialistas ouvidos, Clovis de Barros Filho, doutor em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a publicidade não promete apenas a satisfação da posse, mas também a alegria da inscrição na sociedade.

 

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Os depoimentos, um raio da x da geração que está mais para as Patricinhas de Beverly Hills do que para a turma rural do Cocoricó, são entremeados com dados estatísticos e pontos de vista de profissionais das áreas de direito, educação, psicanálise, sociologia, comunicação, psicologia, saúde e nutrição - entre eles, Ana Lucia Villela, Yves de La Taille, Inês Silvia Sampaio, José Eduardo Romão, Clovis de Barros Filho, Pedrinho Guareschi e Ana Olmos.

 

Para Estela, as meninas são as que mais sofrem com o assédio da propaganda. "A publicidade mira o lado vulnerável das garotas, o de querer ser uma princesa. Para se tornar uma, não basta a fantasia, o dom mais precioso da infância. É preciso ter o produto." A respeito, o psicólogo Yves de La Taille, co-autor do livro Nos Labirintos da Moral, entre outros, lembra que, se antes a criança brincava de boneca, hoje a brincadeira virou projeção: "Ninguém mais brinca de ser a mãe da Barbie."

 

O que mais impactou a cineasta ao ouvir relatos absolutamente iguais, não importando a classe social, foi o encurtamento da infância:

 

- Tenho como referência a artista plástica Loise Bourgeois. Ela dizia que todos os seus trabalhos tinham raízes na infância, com sua mágica e encantamento. Na Índia, por exemplo, a infância é vivenciada plenamente. Então, não se trata de utopia, mas de uma mobilização da sociedade como um todo. Não se pode culpar os pais. Perniciosa, a publicidade se vale do convívio de horas da criança com a TV, levando os pais a suprirem sua ausência com presentes que, claro, não preenchem necessidades de afeto e carinho. Daí a comprar mais e mais.

 

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

A erotização precoce é outro ponto crítico. Os comerciais de cerveja, como pontua a pedagoga Ana Lucia Vilela, mostra mulheres bonitas e seminuas, servindo os homens, o que reforça a ideia da imagem feminina como mero objeto sexual. No documentário, uma garota de 13 anos, grávida pela segunda vez e que se diz noveleira e fã do desenho Pica-Pau, se espelha na beleza física da atriz Juliana Paes, justamente estrela de um comercial de cerveja. Segundo uma professora de ensino público, Eliana Santos, a partir dos 3 anos, as meninas já vão de batom para a escola. Conta ainda que uma aluna de 8 anos disse que foi à loja comprar uma calça justa que "valorizasse o corpo".

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Cabe aqui a indagação do promotor João Lopes Guimarães, um dos entrevistados: "Se a criança não pode comprar, porque é considerada incapaz pela legislação, como aceitar uma peça publicitária persuasiva?" Para Estela, o Brasil deveria se espelhar nos países onde a legislação sobre a proteção de direitos da infância é mais rígida. "O Conselho de Autorregulamentação Publicitária, o Conar, criou normas a respeito, porém é um órgão corporativo. Existe um projeto de lei que regulamentaria de forma mais especificada a questão da publicidade dirigida às crianças, mas cada etapa pode demorar até sete anos para ser aprovada."

 

No entanto, nem tudo está perdido. Como diz um comercial de sandálias, depois de repetir à exaustão o que é ser fashion, lá pelas tantas, a menina diz às amiguinhas do filme que fashion é brincar, porque, afinal, ninguém é de ferro.

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