PUBLICIDADE

Canto de ave vira acervo digitalizado

Professor da Unicamp reúne milhares de fitas que acumulou em 35 anos de expedições pelas florestas

Por Herton Escobar
Atualização:

Pouca gente fora da comunidade científica já ouviu falar de Jacques Vielliard. Aos 65 anos, porém, esse ornitólogo francês de sotaque forte e sorriso solto já dormiu mais noites na floresta e ouviu mais cantos de pássaros do que a maioria dos brasileiros. A prova está gravada nas milhares de fitas magnéticas que ele acumulou em 35 anos de expedições pelas matas, caatingas e cerrados do País, sempre de microfone na mão e gravador pendurado no ombro. O resultado é um dos maiores acervos de sons da natureza já reunidos no mundo, que agora está sendo digitalizado para não se desfazer.Ouça o canto das aves Vielliard é professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nascido em Paris, ele veio ao Brasil pela primeira vez em 1973, convidado pela Academia Brasileira de Ciências para uma série de expedições científicas que tinham como objetivo documentar a biodiversidade nacional. "Einstein foi convidado duas vezes para vir ao Brasil, eu fui quatro", vangloria-se o professor, com o sorriso maroto de quem já passou da idade de falsa modéstia. Em 1978, foi convidado para dar aulas na Unicamp e ficou. "Troquei Paris pela natureza", diz Vielliard. Um amigo uma vez calculou que ele já dormiu mais de 3 mil noites "no mato" - o equivalente a oito anos de trabalho contínuo no campo. Nesse tempo, já ouviu e gravou de tudo na natureza: insetos, sapos, onças e até baleias. Mas principalmente pássaros, sua especialidade. Vielliard não sabe exatamente quantas espécies de aves já "capturou" com seu microfone, mas estima que sejam mais de mil. O acervo completo tem cerca de 30 mil gravações, que podem variar de alguns minutos a algumas horas de duração. Mais de 7 mil já foram digitalizadas. É a maior coleção de bioacústica da América do Sul e a quinta maior do mundo, segundo Vielliard. No início de cada rolo, anotações feitas à mão e em francês registram onde, quando e em quais circunstâncias a gravação foi feita. Se o animal demonstra algum comportamento peculiar durante o canto, isso também é anotado. "Estudar a biodiversidade não é só contar espécies", ensina Vielliard. "Você tem de saber como aquela biodiversidade se desenvolveu, quais foram os processos evolutivos que levaram a ela. Tem de ver os bichos na natureza, saber como eles interagem. Isso é biodiversidade." Ele explica que cada espécie tem um canto específico, que funciona como uma carteira de identidade sonora para que os indivíduos possam se reconhecer e se comunicar na natureza - mesmo quando não conseguem se ver. "É como se você me mostrasse o seu RG", diz. Vielliard também não precisa ver uma ave para reconhecê-la. Bastam os ouvidos. "Na mata você tem de estar preparado para reconhecer pelo menos umas 500 espécies instantaneamente", diz. "Infelizmente não dá para memorizar muito mais do que isso." Qual o segredo de um ouvido tão afinado? Nenhum, responde Vielliard. "Não tenho ouvido especial. É só prestar atenção", garante o professor. O problema é quando aparece um sabiá poliglota, um pássaro que não tem canto próprio - só imita o de outras espécies. Dentro de sua sala na Unicamp, o professor pede para a aluna Milena Corbo tocar uma gravação digitalizada. Na tela do computador aparece algo como uma partitura musical, pontuada por vários cantos - cada um diferente do outro. "É tudo o mesmo pássaro", diz Vielliard. "Fiquei cinco dias na cola dele no Acre." Segundo ele, o sabiá é um bicho desconfiado para cantar e se deixar gravar. "Você tem de fingir que nem está olhando", diz. Mesmo os cantos "pirateados" do sabiá, porém, têm uma estrutura sonora específica da espécie que um ornitólogo de ouvidos bem treinados consegue reconhecer. IMPORTÂNCIA Os sons têm importância científica. O canto de cada ave é tão específico que serve como um registro oficial da ocorrência de uma espécie em uma determinada área - tão válido cientificamente quanto capturar o animal numa rede. Quando é preciso uma confirmação visual, usa-se o playback: o ornitólogo toca o canto gravado de uma ave na mata e observa. Se houver um indivíduo da mesma espécie nas redondezas, ele responderá ao chamado e se aproximará. Sempre? "Sempre", diz a bióloga Maria Luisa da Silva, mulher de Vielliard e sua colega de pesquisa na Universidade Federal do Pará (UFPA). Se o playback não funciona, é porque a ave que parecia ser de uma mesma espécie, na verdade, não é. Há casos de espécies que são quase idênticas morfologicamente e só podem ser diferenciadas pelo canto - chamadas espécies crípticas. Quando estiver pronto, o acervo digital poderá ser usado por cientistas como um banco de referência para identificação de espécies. "É uma ferramenta que vai facilitar muito as nossas pesquisas", afirma Maria Luisa. "O melhor de tudo é que não precisamos coletar (matar) os animais, basta o registro sonoro." A estimativa é de que o trabalho de digitalização leve mais três ou quatro anos. O projeto é financiado pela Unicamp, UFPA e dois empresários, Patrice de Camaret e Luiz Pastore. O acervo inclui gravações feitas por outros pesquisadores e de outros grupos de fauna, como anfíbios (cerca de 300 espécies) e alguns mamíferos e insetos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.