PUBLICIDADE

Apartheid hospitalar na Índia

Tudo para quem pode pagar, e quase nada para os que dependem de instituições administradas pelo governo

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

"Para ter a melhor assistência médica", diz Robin Steeles, corajosamente, "você tem de pagar por ela". Steeles, 60 anos, revendedor de carros no Alabama, Estados Unidos, girou o mundo no mês passado para salvar seu coração a um preço que pudesse pagar. Ele teve sua válvula mitral reparada em um hospital particular moderníssimo de Bangalore, o Wockhartdt, e está há 10 dias em recuperação, num quarto acarpetado, com vista para um pátio frondoso. Uma nutricionista ajuda a selecionar suas refeições. Um dermatologista o atende tão logo ele se queixa de uma picada. Sua suíte tem TV a cabo, computador e refrigerador. Três dias após a operação, ele já estava sentado, sorrindo, conversando, emocionado por estar vivo. Na sua cama está o jornal da manhã. Na capa, a história de outros homens, operários que trabalham no próspero setor de construção de Bangalore, que adoeceram gravemente depois de ingerir bebida alcoólica fabricada ilegalmente. Mais de 150 pessoas morreram na semana, na região de Bangalore e no Estado vizinho de Tamil Nadu. Mas não são para eles os melhores hospitais particulares da Índia. Foram levados para o superlotado Hospital Bowring, do governo, no outro lado da cidade. Lá não há unidade de terapia intensiva (UTI), não há aparelhos para ventilação artificial ou para diálise. O jantar era um pedaço de pão branco - sobre o qual uma barata passeava enquanto um paciente dormia. O hospital Wockhardt possui 30 aparelhos para ventilação artificial. Num determinado período, uma meia dúzia estava em uso. Uma senhora idosa ficou na UTI durante uma semana, fazendo diálise.Sua família fez o que era possível para mantê-la viva, sem se importar com o custo. No hospital Bowring, um dos jovens médicos, Harish, diz que um aparelho de ventilação artificial e um de diálise lhe permitiria manter metade dos pacientes com vida. No caso mais grave, de Mohammed Amin, o paciente era submetido à respiração artificial com a ajuda de uma bomba manual manipulada pela esposa. Harish mandou a parente do doente realizar os testes sanguíneos no hospital privado mais próximo, pois no Bowring não havia equipamento para isso. Em seguida, correu para a seção de triagem, onde um recém-chegado, se retorcendo de dor, desorientado pelo veneno nos intestinos, precisou ser amarrado. A posição que você ocupa na escala social condiz com sua saúde e a assistência médica que recebe. Os leitos no Bowring são para homens pequenos, magros. Já o Worckhardt oferece programa de emagrecimento. A maioria dos clientes sofre de diabete por causa da obesidade. Não é nenhuma anomalia. Um estudo sobre saúde da família no plano nacional, patrocinado pelo governo indiano e divulgado no ano passado, mostrou que uma mulher nascida na camada mais pobre da população tem duas vezes mais probabilidade de ser raquítica e 50% mais risco de sofrer de anemia do que uma pertencente à faixa rica. No caso das crianças, a diferença é igualmente cruel. Aquelas da camada mais pobre têm duas vezes mais risco de ter o crescimento comprometido por sofrer de desnutrição crônica e quase três vezes menos chance de estar imunizada. "Não quer dizer que os pobres não buscam tratamento", diz Jishnu Das, economista que estuda os problemas ligados à saúde e à pobreza para o Banco Mundial. Ocorre que o mais comum é baterem na porta de profissionais incompetentes e indiferentes às suas necessidades. De acordo com o estudo, dois terços das famílias indianas procuram assistência médica particular, preferência que transcende a classe. Indagadas por que não procuram o serviço público, comumente respondem que o atendimento é precário. A Índia tem uma rede de centros de saúde e hospitais públicos, mas as equipes médicas, remédios e recursos variam muito. Alguns, especialmente na área rural, são famosos por terem equipes só no papel. Isso está apenas começando a mudar. Nos últimos anos, o governo vem incrementando seus gastos com saúde e este ano iniciou um programa que permitirá às pessoas pobres o acesso a um hospital da sua escolha. Os jornais matinais não deixam Steeles esquecer do grande abismo entre o seu problema e os dos operários que ingeriram bebida envenenada e lutam pela vida no hospital Bowring. Por mais separadas que as duas histórias sejam, elas seguem um enredo paralelo. O sistema de saúde americano não oferece a ele um atendimento médico melhor do que o sistema indiano ofereceu a Amin. Steeles veio à Índia porque não tem seguro-saúde nos EUA e não podia pagar pela cirurgia do coração em seu país. Depois de cinco meses de pesquisa e e-mails para médicos em todo mundo, optou por Bangalore. A suíte real de Steeles está disponível para qualquer pessoa, indiano ou estrangeiro, que possa pagar por ela. Depois da sua estada ali, ele será transferido para um quarto em um clube privado, onde passará 16 dias em uma nova fase de recuperação. O custo total será de US$ 20 mil, um décimo do que pagaria nos Estados Unidos. Do outro lado da cidade, entre os operários, os casos mais graves foram transferidos para hospitais privados que concordaram em aceitá-los, às custas do governo. Amin estava apavorado de ser transferido. Ele morreu no Hospital Bowring, deixando a mulher e dois filhos pequenos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.