Uma 'semente de esperança' para transgêneros em comunidades árabes

Talleen espera um dia poder orientar os pais árabes a aceitar os filhos transgêneros

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Por Diaa Hadid
Atualização:
Talleen Abu Hanna é a primeira transgênero de Israel a ganhar concurso de beleza Foto: Rina Castelnuovo/The New York Times

Tel Aviv, Israel - Quando Talleen Abu Hanna era um menino em Nazaré, cidade árabe em Israel, deixou de treinar caratê e passou a fazer balé. Quando adolescente, roubava a maquiagem da mãe e os vestidos da irmã. Junto com os colegas, ele se trocava em postos de gasolina nos arredores da cidade, para festejar em boates gays.

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"Eles viam garotos entrando, então passávamos sombra nos olhos, botávamos perucas, saias, vestidos e saíamos dizendo 'oi'", conta Talleen, 21 anos, prolongando a última palavra.

Durante a adolescência, ela preferia um visual que descreve como cafona árabe - muito delineador, blush e base, encoberto por uma peruca barata. Depois de voltar para casa, tinha de arrancar as unhas postiças com os dentes e trocar a capa cintilante do iPhone por uma simples de couro.

Foi numa dessas festas, no entanto, quando tinha uns 15 anos, que Talleen conheceu uma mulher que lhe contou que antes era homem. Rindo, Talleen perguntou aos amigos o que "aquela senhora" estava fumando. Rindo também, os amigos explicaram para ela o que era uma cirurgia de redefinição sexual.

Parada Gay realizada em junho em Tel Aviv Foto: Jim Hollander/European Pressphoto Agency

A explicação foi uma revelação para Talleen, que sempre pensou que viveria como um homem muito afeminado. "Eu falei: 'Ai, meu Deus, é sério? Vocês estão falando sério?' Existem pessoas como eu? Então brotou a ideia na minha cabeça, e eu me segurei nela como se fosse uma corda para me salvar."

No primeiro semestre, um ano depois de passar pela cirurgia, Talleen se tornou a primeira miss transgênero de Israel, vencendo o concurso de beleza Miss Trans Israel, com direito a uma coroa cravejada de cristais Swarovski que mal cabia em seu cabelo armado, e algo a que ela dá mais valor: visibilidade, para si mesma e para uma causa na qual acredita.

"Ela era tão bonita, impressionante", afirma Israela Lev, ativista transgênero que organizou o concurso e conheceu Talleen em um restaurante japonês de um shopping center.

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Agora, Talleen pensa em um palco ainda maior: o concurso de beleza Miss Trans Star International, em Barcelona, Espanha, em 17 de setembro.

"Acho que ganhar a coroa em Barcelona dará alguma esperança, como plantar uma semente" para outras pessoas transgêneras. "Imagine que por causa de quem você é, você tem de deixar sua família, sua casa e país - estou falando dos países árabes."

Ela pretende representar Israel por "respeito, porque é uma democracia que me deu a paz entre meu corpo e a minha alma".

Ela vai representar talvez a face mais cosmopolita de Israel, uma mulher transgênera árabe que convive confortavelmente entre palestinos e israelenses, entre muçulmanos, judeus e cristãos.

Sua conta no Instagram mostra uma mulher que dubla alegremente músicas bregas em árabe e hebreu. Seu ex-namorado é muçulmano - seu nome, Mohammed, está tatuado no punho - e existe uma "mezuzá" em sua porta. Ela é da comunidade israelense católica, um subconjunto minúsculo da minoria palestina que responde por um quinto dos oito milhões de habitantes do país.

"Eu sou árabe. Sou cristã. Sou israelense. Está tudo unido. E vou vencer", afirma Talleen.

Ela tem uma boa chance, acredita Thara Wells, diretora do concurso de beleza, porque é bonita e também causa comoção.

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"A história dela é tão diferente", assegura Thara.

Mas nada é simples nesta parte do mundo. Mesmo entre os gays, sua tentativa de ganhar a coroa de beleza gerou críticas. Os principais grupos palestinos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros não quiseram comentar as atividades de Talleen. Já os ativistas transgêneros dizem que os grupos encaram a decisão de representar Israel como "pintar de cor-de-rosa", expressão que os críticos utilizam para descrever como Israel vende sua reputação amistosa para os gays para mudar o foco da ocupação militar.

Lilach Ben David, 26 anos, transgênera e ativista, disse estar "dividida".

"Talleen Abu Hanna certamente será usada pela máquina de propaganda israelense para justificar os crimes medonhos contra o próprio povo de Talleen Abu Hanna", afirma Lilach.

Mas "se a sociedade palestina aceitasse Talleen Abu Hanna como mulher transgênera, então ela não precisaria trabalhar com o sistema israelense".

Ser abertamente gay e depois transgênero nessa sociedade conservadora palestina nunca seria fácil para Talleen. O pai e boa parte dos parentes cortaram relações com ela há muitos anos, depois que foi denunciada por um escoteiro irritado de sua tropa o qual descobriu que ela mantinha um segundo perfil no Facebook como mulher.

O escândalo abalou a família. Temendo a violência nas mãos de um parente vingativo, a mãe lhe deu US$ 100 para que pudesse fugir, coisa que ela fez - primeiro para a casa de um amigo palestino em Haifa, Israel, e, a seguir, para Tel Aviv.

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A palavra "mãe" em árabe decora um de seus punhos, uma tatuagem de gratidão porque as duas mantêm contato.

Talleen espera um dia poder orientar os pais árabes a aceitar os filhos transgêneros. Na sequência, começou um discurso ensaiado sobre o assunto, mas quando questionada sobre o próprio pai, fez uma pausa.

É claro que o pai a amava, mesmo tendo cortado relações, ela assegura. Foi a vergonha que o pai encontrou em meio à comunidade que o manteve afastado.

"Meu pai deveria se orgulhar de mim", diz Talleen, batucando na mesa com suas longas unhas. "Ele é o pai da Miss Trans Israel."

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