Dez anos da Lei Maria da Penha: Mulheres que se livraram de agressores querem encorajar a denúncia

'Hoje eu me amo e não permito que ninguém me ofenda ou falte com respeito por mim', diz mulher após se livrar de parceiro que a agrediu por 12 anos

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Por Hyndara Freitas
Atualização:
A maioria das mulheres não denuncia o agressor por vergonha, principalmente nas classes mais altas. Foto: Reuters

Completando dez anos neste domingo, 7, a Lei Maria da Penha é conhecida por quase todos os brasileiros. Segundo pesquisa feita pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, de 2013, 98% da população já ouviu falar na lei e 70% considera que a mulher sofre mais violência em sua própria casa do que em locais públicos.

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A lei ganhou este nome em homenagem a uma das tantas vítimas de agressão doméstica no País. Maria da Penha Fernandes, hoje com 71 anos, é uma biofarmacêutica cearense, que foi casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros. Ela foi agredida por ele diversas vezes e, em 1983, sofreu uma tentativa de assassinato. Ela lutou por justiça durante 19 anos e só conseguiu quando levou a denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que acatou o caso, condenou o Brasil por negligência e exigiu que fosse criada uma legislação adequada.

Viveros foi preso somente em 2002 e, em 2006, foi criada a Lei 11340/06, que prevê mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher, seja física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral.

Somente nos dez primeiros meses de 2015, foram 63.090 denúncias de violência contra a mulher, segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). Entre esse número, 85,85% corresponderam a situações de violência no ambiente doméstico e familiar, sendo que 67% foram cometidas por homens com os quais as vítimas tinham vínculo amoroso, como namorados e cônjuges e ex-namorados e ex-cônjuges.

Os dados acima são baseados no Disque Denúncia 180, específico para denúncias de violência contra a mulher. O problema é que há muitos outros casos não denunciados. Cerca de 66% das mulheres agredidas têm vergonha de denunciar, segundo uma pesquisa nacional feita em 2013 pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Data Popular, encomendada pela SPM-PR.

E quanto maior é a classe social da vítima, mais recorrente é o constrangimento. Outros fatores também levam as vítimas a não denunciarem, como filhos e o fato do agressor prometer não agredi-las mais, que faz com que elas repensem a acusação.

Kátia Osório é uma das tantas vítimas de violência doméstica. Ela viveu com um agressor por nove anos e, hoje, faz um trabalho voluntário de conscientização para mulheres sobre a importância de denunciar o agressor. Ela entrega flores nas ruas para mulheres com mensagens de encorajamento e faz um trabalho de empoderamento em suas redes sociais. Ela usou a situação que viveu como uma força.

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Iniciativas como a de Kátia ajudam outras mulheres a terem coragem e a expor a violência que sofrem. E este é o propósito de muitos outros projetos e grupos. No Facebook, por exemplo, há alguns grupos de apoio a mulheres que sofrem relacionamentos abusivos e agressões por seus parceiros. Nestes locais, as mulheres contam suas histórias, pedem e dão conselhos, conquistam acolhimento e apoio. A maioria dos grupos é criada por mulheres que também passaram por esse tipo de situação.

É comum ver, nestes grupos, mulheres revelando que o ambiente em que vivem as inibe de contar as violências que sofrem, pois muitas sofrem julgamento de familiares e amigos, e já foram desacreditadas por tantas vezes, que desistem de denunciar o agressor. Além disso, esses espaços levam informação às mulheres sobre como denunciar, por exemplo, e onde encontrar apoio jurídico.

Nessa ideia de levar informação, o advogado Ângelo Carbone, especializado em direito da mulher e da criança, criou o Manual da Mulher. O livro já está na segunda edição e está disponível online gratuitamente, para ser lido no computador ou impresso. Neste manual, Carbone fala sobre como proceder em caso de agressões, separações, solicitação de guarda dos filhos, solicitação de pensão e outros tópicos jurídicos afins, todos explicados de forma bastante didática.

O manual ainda explica a Lei Maria da Penha e em que casos ela se aplica, fala sobre a violência patrimonial e moral e dá dicas para as mulheres se protegerem juridicamente. Para baixar o manual, clique aqui.

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O E+ publicou, recentemente, uma iniciativa de um grupo de advogadas que atendem gratuitamente mulheres vítimas de violência doméstica em Salvador (BA). O 'TamoJuntas' fez tanto sucesso que pretende criar uma rede de profissionais em todo o País.

Para que não se repita. A história de Kátia como vítima de violência doméstica começou em 1989, quando ela, aos 21 anos, queria ter independência e, para desafiar sua mãe, resolveu morar com o namorado. Ela morava em Campinas, interior de São Paulo. "Minha intenção era ficar somente por um tempo no apartamento dele e depois morar sozinha, porém ele criou uma espécie de obsessão por mim e, devido ao uso de drogas, a coisa só piorava", relembra. Aí teve início um pesadelo.

No mesmo período em que foi morar com o parceiro, sua mãe resolveu voltar para Belém, no Pará, seu local de origem, e Kátia ficou sozinha em Campinas com o namorado. Seus irmãos ficaram na cidade paulista, mas ela disse que não podia contar para eles o que acontecia em casa. "Meu agora 'dono' ameaçava matar minha família caso eu contasse o que ocorria em nossa casa ou se eu o largasse", revela.

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"Minha vida era de surras, traições, humilhações e até estupros. Hoje, eu sei que quando uma mulher não quer ter relações sexuais e é forçada, é considerado estupro, porém aos 21 anos eu acreditava que era uma obrigação manter relações porque ele era meu companheiro. Este era um momento de grande tortura, porque eu buscava pensar em várias coisas, como se minha alma quisesse sair do corpo para não sentir aquele pênis entrando em mim".

O relacionamento durou nove anos. Neste tempo, ela teve um filho e diz que, durante a gravidez só não foi agredida pois uma senhora estava morando em sua casa. Depois, porém, a senhora foi embora e a vida de Kátia continuou com surras, estupros e humilhações. Quando seu filho tinha sete anos, ela falou que chegou ao seu limite. "Pensamentos de suicídio eram constantes, afinal eu já estava morta em vida, e só não o fiz porque pensava na dor do meu filho. Então eu disse ao meu marido que iria me separar. Eu levei um baita soco na cara e aí a coisa só piorou, ele confiscou meu dinheiro, grampeou o telefone e me deixava trancada em casa."

Um dia, no período em que estava sendo mantida presa, Kátia encontrou a porta aberta e aproveitou para ir até um telefone público. Porém o agressor a estava observando e, por achar que ela estava falando com um suposto amante, ele bateu muito nela. "Ele enfiou uma estaca no meu rosto e dizia que iria me deformar para nenhum outro homem olhar para mim".

No dia seguinte, ela pegou seus documentos e os de seu filho e colocou na mochila da escola da criança. Naquele dia, o marido havia deixado dinheiro para ela pagar o transporte escolar, então ela foi com o filho até o transporte e, ao chegar na rua, ela disse que iria fugir e perguntou se ele queria ir com ela. "Sem titubear ele escolheu ficar comigo. Lembro que expliquei que a mamãe não tinha dinheiro e não sabia para onde ir, foi então que eu ouvi a coisa mais linda da minha vida, ele me respondeu que 'não importava, que confiava em mim e sabia que eu era capaz de criá-lo'. Neste momento, eu recebi uma injeção de coragem tão grande que o peguei pela mão e comecei a correr. Fomos parar num local que não sei onde é."

Lá, ela pediu socorro a um guarda, que chamou a polícia. Os policiais os levaram para uma delegacia e, chegando lá, ela se decepcionou com o atendimento: "Os policiais me trataram com desprezo, como se eu fosse a culpada por ter apanhado, como se o marido fosse a vítima, não aguentei ficar lá, então não fiz B.O. Saí de lá, pegamos um táxi e nos dirigimos à Delegacia da Mulher, onde finalmente encontrei amparo, elas entenderam minha situação, me apoiaram e eu senti confiança em fazer o boletim". Depois do boletim, a audiência de separação e de guarda do filho foi marcada.

Bastaram algumas semanas longe de seu agressor para que ela começasse a se reerguer. "Enquanto eu fiquei na casa abrigo minhas forças foram crescendo, era como se eu estivesse me transformando em outra pessoa, aquela menina assustada estava morrendo e em seu lugar estava brotando uma mulher destemida, e foi esta mulher que apareceu na audiência junto ao juiz."

Depois da audiência, em que abriu mão de todos os bens, Kátia saiu do abrigo com seu filho e foram morar na casa de uma tia. Um tempo depois, ela conseguiu um emprego, alugou uma casa e sua vida seguiu melhorando.

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Para que essa vida de tristezas ficasse para trás, Kátia decidiu se mudar para Joinville, em Santa Catarina, após começar a namorar uma pessoa que tem família lá. O novo relacionamento dá certo até hoje, seu filho se formou na faculdade, casou e teve uma filha. Kátia, hoje com 48 anos e morando em São Paulo, tem uma empresa de equipamentos de proteção individual com sua sogra, é artesã e busca encorajar as mulheres a saírem da escuridão da violência doméstica.

"Quando a mulher percebe que existe um mundo onde  ela não é burra, feia, incapaz, ela começa a sair do coma e querer viver porque ela enxerga que a vida que ela tem, na realidade não é vida: é morte. E quando perdemos o medo a mágica acontece...  Quero fazer por outras o que eu gostaria que tivessem feito comigo: ouvir uma mulher bem resolvida me dizendo 'eu já estive onde você está e saí... Eu sobrevivi. Você também pode e tem esse direito", diz Kátia, esperançosa.

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