Brasil confronta epidemia de violência antigay

Para os ativistas, a constante violência homofóbica também ameaça anular o idealizado ambiente nacional que promete igualdade e respeito para todos os cidadãos

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Por Andrew Jacobs
Atualização:
Antonio Kvalo criou um site onde brasileiros pondem relatar experiências homofóbicas, disse que a própria experiência o motivou Foto: Lalo de Almeida/The New York Times

RIO - O atacante cravou uma faca no pescoço de Gabriel Figueira Lima, de 21 anos, quando ele andava na rua de uma cidade da Amazônia duas semanas atrás. Fugiu em seguida na garupa de uma moto, deixando a vítima moribunda.

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Dias antes, no Estado nordestino da Bahia, dois professores muito queridos, Edivaldo Silva de Oliveira e Jeovan Bandeira, também haviam sido mortos. Seus restos carbonizados foram encontrados no porta-malas de um carro incendiado.

No fim do mês passado, Wellington Júlio de Castro Mendonça, um tímido balconista de 24 anos, foi surrado e apedrejado até a morte numa cidade próxima ao Rio.

Mesmo num país que parece já estar acostumado ao crime, os brutais assassinatos chamaram a atenção, por serem as vítimas todas gays ou transgêneros. Nada foi roubado delas e até o início da semana a polícia não tinha suspeitos.

Enquanto os americanos ainda discutem exaltadamente como responder ao massacre do mês passado numa boate gay de Orlando, na Flórida, os brasileiros são confrontados com sua própria epidemia de violência antigay - que, segundo algumas estimativas, deu ao Brasil a ignóbil posição de país mais mortal para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.

Perto de 1,6 mil pessoas foram mortas em crimes de ódio nos últimos quatro anos e meio segundo o Grupo Gay da Bahia, que faz a estatística das mortes com base no noticiário. Pelos levantamentos do grupo, um gay ou transgênero é morto quase todo dia no país de 200 milhões de habitantes. "E esses números são apenas uma fração da violência", diz Eduardo Michels, responsável pelas pesquisas do Grupo Gay. De acordo com ele, é frequente a polícia omitir a motivação antigay ao fazer as estatísticas de homicídios.

Tais estatísticas são difíceis de equacionar com a propalada imagem de uma sociedade brasileira tolerante e aberta - e de país que cultiva a liberdade de expressar a sexualidade durante o carnaval, promovendo ainda a maior parada gay do mundo, na cidade de São Paulo.

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Aqui no Rio, sede da próxima Olimpíada, o medo da violência está em muitas mentes. Em meio a uma recessão esmagadora e desemprego crescente, o crime nas ruas aumentou 24% neste ano e a taxa de homicídios subiu mais de 15% .

Ao mesmo tempo, ativistas de direitos humanos dizem que a polícia do Rio, ansiosa para "limpar" a cidade antes da abertura dos Jogos Olímpicos, em 5 de agosto, matou mais de cem pessoas neste ano, na maioria jovens negros de favelas.

Para os ativistas, a constante violência homofóbica também ameaça anular o idealizado ambiente nacional que promete igualdade e respeito para todos os cidadãos. "Gostamos dessa imagem de lugar aberto e tolerante", diz Jandira Queiroz, coordenadora de mobilização da Anistia Internacional no Brasil. "Mas a violência homofóbica atingiu níveis de crise, e está piorando."

A quase mítica reputação de tolerância do Brasil tem sua razão de ser. Nas três décadas em que a democracia tomou o lugar da ditadura militar o governo brasileiro introduziu várias leis e políticas visando a melhorar a vida de minorias sexuais. Em 1996, o Brasil esteve entre os primeiros do mundo a garantir drogas antirretrovirais grátis para pessoas com HIV. Em 2003, o país foi o primeiro na América Latina a reconhecer uniões entre pessoas do mesmo sexo, e dos primeiros a permitir a adoção de filhos por casais gays. Em 2013, o Judiciário brasileiro legalizou efetivamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Para alguns especialistas, essas políticas governamentais liberais podem estar muito distantes da realidade nacional. A violência antigay, argumentam eles, tem raízes numa cultura brasileira de machismo influenciada por uma vertente de cristianismo evangélico vinda dos Estados Unidos e manifestamente contrária à homossexualidade.

Os evangélicos são hoje quase um quarto da população do Brasil, dos 5% que eram nos anos 1970. Seus líderes religiosos alcançam milhões de pessoas por meio das centenas de emissoras de rádio e televisão que adquiriram em anos recentes.

Dudu Quintanilha é um artista e fotógrafo de São Paulo, disse que apanhou com um porrete de quatro assaltantes na última edição do carnaval Foto: Lalo de Almeida/The New York Times

Congregações pentecostais de estilo americano também têm uma atuação cada vez mais forte na política brasileira. Eleitores evangélicos ajudaram a emplacar mais de 60 deputados em uma Câmara de 513 membros. O número de parlamentares evangélicos dobrou desde 2010. Eles são um dos blocos mais disciplinados de uma legislatura desordenada e dividida.

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Jean Willys, único congressista declaradamente gay, diz que os parlamentares evangélicos, núcleo de uma coalizão conhecida como "bancada BBB" - de bala, do boi e da Bíblia -, vêm bloqueando leis que puniriam a discriminação de gays e aumentariam as penas para crimes de ódio. "Os evangélicos estão se tornando cada vez mais poderosos e já dominaram o Congresso", afirma Willys.

Eduardo Cunha, comentarista de rádio evangélico que presidia a Câmara (renunciou ao cargo na última quinta-feira, dia 7)e é acusado de ter recebido mais de R$ 130 milhões em propina, uma vez sugeriu que o Congresso criasse o Dia do Orgulho Heterossexual. Quando uma novela de TV apresentou um beijo gay ele manifestou sua repulsa no Twitter.

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Num debate presidencial pela televisão em 2014 um dos candidatos, Levy Fidelix, disse que homossexuais não serviam para ser pais e que "o aparelho excretor não reproduz". Jair Bolsonaro, congressista bastante conhecido por sua visão conservadora, recomendou punições corporais como meio de tornar gays heterossexuais.

Javier Corrales, cientista político do Amherst College que estuda movimentos de direitos dos gays na América Latina, diz que grande parte da homofobia é uma reação a conquistas como casamento entre pessoas do mesmo sexo. "Os brasileiros estão ficando mais tolerantes", diz ele, "mas os que continuam intolerantes e se opõem aos direitos LGBT estão desenvolvendo novas estratégias e um discurso mais virulento para bloquear avanços nesse campo."

Marco Feliciano, membro destacado da bancada evangélica no Congresso, rejeita a sugestão de que sentimentos antigay incentivem a violência. Numa entrevista, ele se desculpou por ter anteriormente descrito a aids como "câncer gay", mas defendeu a luta contra leis de direitos dos gays. Feliciano insistiu, por exemplo, que casais do mesmo sexo não servem para ser pais. "Eles põem a civilização e a família tradicional em risco de extinção", afirmou.

Políticos conservadores têm resistido às tentativas de se ensinar tolerância nas escolas, e a polícia vem mostrando pouco interesse em adotar programas de treinamento para ajudar soldados da Polícia Militar a lidar com crimes preconceituosos. Vítimas da violência antigays e transgêneros dizem que frequentemente sofrem nova humilhação por parte de autoridades policiais, algumas das quais são abertamente hostis à requisição de que registrem um crime como motivado por preconceito.

Dudu Quintanilha, de 28 anos, artista e fotógrafo de São Paulo, diz que foi surrado a pauladas por quatro agressores durante o carnaval deste ano. Os agressores o atacaram no centro da cidade, gritando slogans antigays enquanto deixavam seu rosto sangrando. Mas a polícia, acusa ele, recusou-se a considerar o ataque um ato de homofobia.

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Na delegacia, durante várias horas os policiais insistiram que ele tinha sido vítima de um simples assalto, uma vez que celular e carteira foram levados em meio à confusão. "No fim, me fizeram duvidar de que um ataque homofóbico tivesse realmente ocorrido", diz ele. "Fizeram-me duvidar de que eu estivesse em meu juízo perfeito."

Antonio Kvalo, de 34 anos, webdesigner, criou o site temlocal.com.br, em que são divulgados casos de violência antigay. Kvalo diz que fez o site motivado por uma agressão que ele próprio sofreu em 2008, quando dois homens o cercaram numa rua do Rio e o chutaram dezenas de vezes.

Quando os policiais chegaram, passaram a questioná-lo repetidamente sobre seu relato e, como ele insistisse em que registrassem o ataque como crime de ódio, mandaram que pusesse as mãos no capô do carro policial na posição de suspeito. "Fizeram com que me sentisse como um criminoso", diz ele.

Segundo ativistas, os transgêneros brasileiros são os que mais sofrem brutalidades, com muitas vítimas de assassinato sendo também terrivelmente mutiladas. No ano passado, um grupo de homens filmou seu ataque a Pi da Silva, de 25 anos, dançarino de samba do Rio. Ele foi torturado e forçado a implorar pela vida antes de ser esfaqueado e levar seis tiros. Os agressores, que postaram o ataque no Facebook, não foram encontrados. "Transexuais vivem em constante medo", diz Kvalo.

Mesmo quando suspeitos de violência homofóbica são presos, frequentemente são tratados com leniência, dizem ativistas dos direitos dos gays. Os dois homens que agrediram selvagemente André Baliera, de 28 anos, estudante de direito, num bairro nobre de São Paulo, foram inicialmente acusados de tentativa de assassinato. Mas, após cumprirem 2 meses de prisão, pagaram uma multa de R$ 20 mil e foram soltos, no ano passado.

O medo ainda assombra Gilson Borges Reis, de 18 anos, estudante, de Lauro de Freitas, cidade industrial do Nordeste do Brasil. No mês passado, um primo que o assediava por ser gay atacou-o na rua com uma faca de cozinha, ferindo-o no peito e braços, enquanto parentes de Gilson assistiam à cena horrorizados.

Gilson sobreviveu e o primo, evangélico, acabou preso. Acusado de tentativa de homicídio, foi rapidamente solto sob fiança. Os dois primos moram na mesma rua. "Ele passa por minha casa e me olhava com uma cara apavorante", diz Gilson. "Não tenho nenhuma proteção. Estou com medo."/Tradução Roberto Muniz

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