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Assexualidade: pouco discutida, mais comum do que se imagina

Estima-se que 7% das mulheres e 2,5% dos homens brasileiros sejam assexuais, ou seja, não sentem vontade de praticar sexo e isso não lhes causa qualquer incômodo

Por Hyndara Freitas
Atualização:
O bolo é um dos símbolos informais da assexualidade. Foto: Pixabay

Bolo é melhor que sexo? A resposta de muitas pessoas para essa pergunta seria um categórico não, mas os assexuais não hesitariam em responder de forma afirmativa. A assexualidade é diferente do celibato, que é uma escolha, e não está na lista de distúrbios psiquiátricos.

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Apesar de pouco discutida, cerca de 7,7% das mulheres brasileiras e 2,5% dos homens, entre 18 e 80 anos, são assexuais segundo dados do Programa de Estudos da Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (ProSex-IPq). "Os assexuais são pessoas que não têm uma sexualidade orientada nem para hetero, nem para homo nem para bissexualidade, não sentem atração sexual nenhuma e vivem muito bem assim, não sentem necessidade de fazer sexo", define a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do ProSex e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.

O descobrir-se assexual é uma longa jornada e, pela falta de informações sobre o assunto, pode ser um processo difícil e solitário. Walter Neto, de 30 anos, conta que se descobriu assexual no fim de 2009, quando terminou a faculdade.

"Hoje, quando penso sobre isso, tenho certeza que sempre fui assexual, mas na época não sabia. Foi quando comecei a estudar mais sobre a sexualidade em geral, buscando uma resposta para mim, e comecei a ter mais contato com a assexualidade. Lendo sobre, comecei a pensar: 'Olha, que engraçado...'. Foi o começo de uma identificação, mas esse processo foi longo. Acho que só em 2013 eu disse para mim mesmo, pela primeira vez e com certeza, que eu era assexual. Em 2015, comecei a contar para amigos e familiares. Foi uma longa jornada", relembra.

Dentro do universo da assexualidade existem algumas subdefinições. Em geral, eles não sentem atração sexual, mas os assexuais na área grey (cinza, em português), ou greyssexuais, podem sentir atração sexual em momentos muito específicos. Já os demissexuais são aqueles que, ao terem ligação afetiva com alguém, podem passar a sentir vontade de fazer sexo. Sim, os assexuais podem se apaixonar, e são divididos em heterorromânticos, homorromânticos e birromânticos. Confira o pequeno glossário abaixo:

Alguns termos mais comuns do universo assexual. Foto: Hyndara Freitas

Joaquim (nome fictício), por exemplo, é heterromântico e demorou dois anos para finalmente entender sua orientação. "Antes de eu me 'aceitar' como assexual, acreditava que era gay ou algo nesse sentido, por não sentir atração por mulheres. Porém, por volta de 2015 eu descobri o termo, comecei a pesquisar mais a respeito então percebi, no ano passado, que sempre fui aquilo. Hoje, me defino como assexual fluido de orientação heterorromântica. Após eu me aceitar, passei a me sentir muito melhor, já não me achava mais estranho, ou pessoa perdida em um mar de gente, como eu costumava me definir", conta.

Aline (nome fictício) também contou com a ajuda de textos na internet para se descobrir. "Vi alguma publicação sobre o tema e me identifiquei bastante. Depois disso, fui pesquisar mais a fundo e, no fim, percebi que realmente me encaixava nesse grupo. Eu já tinha noção que não era como a maioria das pessoas e descobrir a comunidade ace, saber que existiam outras pessoas como eu, fez eu me aceitar melhor. Eu deixei de achar que sou estranha, de tentar agir e imitar as outras pessoas, de tentar ser como elas são, e passei a me aceitar do jeito que eu sou", diz.

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A assexualidade não é considerada doença ou distúrbio psiquiátrico e não pode ser 'tratada' por especialistas, porém ela deve ser diferenciada da hipossexualidade, que é uma patologia.  Na condição de hipossexual, a pessoa não sente o desejo que gostaria e isso causa incômodo e sofrimento. No caso dos assexuais, não há desconforto algum na falta da prática sexual. 

"Está muito claro, cada vez mais, que nós, profissionais da psiquiatria, só vamos considerar uma pessoa portadora de uma limitação, disfunção sexual, a partir do momento em que ela própria venha a trazer isso como um problema, como uma queixa. Caso contrário, não há nenhuma questão a ser tratada. Se o desinteresse estiver relacionado a uma deficiência hormonal, eu trato a deficiência hormonal. Eu não fico fustigando, interferindo na sexualidade daquela pessoa que não me pediu e não demonstrou que estava interessada em mexer nisso. É o desejo do outro, necessidade do outro que mobiliza o profissional especializado. Não há disfunção se não há sofrimento", explica Carmita.

É possível uma pessoa 'se tornar' assexual? Segundo a psiquiatra, apenas após intensos traumas emocionais, por disfunções que atingem o sistema nervoso ou por distúrbios hormonais – geralmente, uma combinação dos três elementos. A médica ainda explica que há dois fatores principais para que a assexualidade atinja mais mulheres que homens. A primeira é cultural, porque elas falam mais de sua sexualidade sem inibição. "Começa pela questão cultural porque o homem é, desde muito cedo, induzido a gostar, a se interessar, a praticar sexo e acaba, por vezes, nem se permitindo a avaliar se ele iria ou não começar naquele momento, praticar daquele jeito, é meio que automática na vida de um homem ter uma vida sexual", diz.

Já a segunda razão é fundamentada na biologia. O homem não tem ciclos hormonais, pois a produção do hormônio sexual testosterona é constante a partir da puberdade. A mulher tem uma série de fatores que vão levando a oscilações hormonais, como a gravidez, o pós-parto, o climatério e a menopausa.

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Em um mundo que dá tanta importância para o sexo, pode ser difícil aceitar o conceito de assexualidade – e aí surge o preconceito. Aline lembra que tentou contar para seus familiares, mas eles trataram a notícia como se fosse uma fase. Com os amigos foi mais fácil, mas ouvir críticas não é incomum. "Já me falaram que é doença, que não acreditam nisso e até aquela piada do 'você se reproduz como as amebas?' já ouvi. O que eu acho mais invasivo é as pessoas perguntarem sobre sua vida sexual, como se, após você virar uma coisa 'exótica' para elas, não tem mais direito à privacidade", desabafa.

Os grupos de Facebook são de grande ajuda para acolher os assexuais. Seja para ajudar a se descobrir, para fazer novos amigos e até começar relacionamentos amorosos – sem sexo, claro – são espaços de interação diária, onde pode-se falar sobre qualquer assunto e livre de preconceito. O grupo Assexuais é o primeiro sobre o tema, e conta com mais de 4 mil membros. Em algumas semanas acompanhando as postagens, é possível ver muitas dúvidas sobre gênero, relacionamentos, desenvolvimento de família e também reportagens e pesquisas sobre a assexualidade. 

"Eu acho extremamente importante a existência de uma comunidade ace dentro e fora da internet, para que a gente possa não se sentir sozinho, para que a gente possa compartilhar experiências, se ajudar e nos organizarmos de forma a promover a nossa visibilidade frente a sociedade. As comunidades de fato tiram muitas dúvidas das pessoas que estão se descobrindo e a gente sempre aprende uns com os outros", opina Joaquim.

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Melhor que sexo. O bolo virou um dos símbolos dos assexuais a partir de uma brincadeira que parte da opinião de que uma fatia de bolo é melhor que ter relações sexuais. Tudo começou na Asexual Visibility and Education Network, a Aven, primeiro espaço de interação social destinado a assexuais. O fórum foi criado em 2001 e é, até hoje, a maior comunidade asexual do mundo. 

Em 2003, membros da Aven criaram um emoticon de bolo para representar a comunidade, porque já era costume receber os novos membros com um bolo, como forma de boas-vindas. Desde então, o alimento tornou-se um símbolo informal da comunidade asexual. Questionado sobre o que seria melhor que sexo, Walter diz que "comer um bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro, ler e escutar músicas" são bem superiores. Joaquim concorda: "Ler um bom livro". 

Outros símbolos da comunidade assexual são a bandeira, com as cores preto, que significa assexualidade; cinza, que significa greyssexualidade, que inclui a demissexualidade; branco, que representa a alossexualidade (pessoas sexuais); e o roxo, que representa a comunidade assexual como um todo. Há também o triângulo assexual, que tem as mesmas cores. Todos os símbolos foram criados pela Aven. 

Relacionamentos. Essa, talvez, seja a questão que desperta maior curiosidade sobre os assexuais. Como há pessoas românticas e arromânticas, nem todos os assexuais podem ou querem ter um relacionamento amoroso. Vale ressaltar que a orientação de um assexual pode ser homorromântica, heterorromântica e birromântica. 

"Já namorei um amigo meu antes de saber que eu era assexual e foi mais pela pressão social do que pela vontade de namorar. Não deu nada certo porque eu não me sentia da forma que as pessoas esperavam, e não conseguia me comportar como todo mundo em um relacionamento (a questão de contato fisico principalmente). Eu terminei muito tempo depois, e essa experiência foi uma das coisas que me ajudaram a me descobrir ace pouco tempo depois", conta Aline, que se define como 'quoi', por não saber exatamente como se sente em relação às outras pessoas. 

Justamente pelas necessidades e desejos diferentes, é difícil para um assexual namorar alguém sexual. "Eu não anseio um relacionamento. Eu não estando em um, não me faz falta. Porém, se eu viesse a gostar muito de alguém, eu gostaria de entrar em um relacionamento com essa pessoa. Eu admito que tenho muito receio em entrar em um relacionamento com uma pessoa alo, acho que elas carregram muitas expectativas dentro de um relacionamento que eu não estaria disposta a atingir, sabe? Então, se eu for me imaginar num relacionamento, eu normalmente me imagino com outra pessoa ace", diz. 

"Meus namoros, ou o mais próximo que posso ter chegado disso, foram um desastre. Sempre terminaram comigo porque diziam que eu parecia não gostar, não fazia com que a pessoa se sentisse desejada. Um menino nunca mais falou comigo depois que eu disse que não queria mais transar, mas não me importaria em estar com ele. Todas essas experiências acabaram mais ou menos perto dos meus 18 anos. Foi nessa época em que eu decidi: 'Ok, é oficial, eu não gosto de sexo e todo mundo só quer sexo, prefiro ficar sozinho'. Depois disso, evitei todo e qualquer avanço. Eu sabia que não iria conseguir me explicar e não achava que valia o esforço porque já sabia como ia acabar. Hoje, eu não me importaria de tentar um relacionamento, até porque já sei como explicar o que sinto. Desde o princípio, já iria explicar que nós não iríamos transar, mas como acredito no poliamor, também sentaria com a pessoa e conversaria com ela para ajustar algo em que ambos ficássemos confortáveis", opina Walter. 

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Apesar de não constar na sigla mais comum e muita gente não saber, os assexuais se consideram parte da comunidade LGBT. Entretanto, a aceitação ainda é mínima. Joaquim fala que há muitos que lutam por isso, mas o preconceito impera. Walter acha que a luta tem de vir dos próprios assexuais, que devem assumir "voz pública dentro da comunidade" e que todos devem se unir para garantir a igualdade de direito. "A gente vê muitos militantes sozinhos, é essencial que demos um passo à frente e estejamos lado a lado", finaliza. 

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