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Vacinar ou não vacinar: eis a questão

Movimento antivacina recebe duro golpe nos Estados Unidos e reacende discussão sobre vacinação infantil

Por Marcel Hartmann
Atualização:
Movimento antivacina defende a não vacinação, entre vários motivos, para não sobrecarregar o sistema imunológico da criança. Foto: Divulgação/Prefeitura de Goiânia

A edição de setembro da revista da Academia Americana de Pediatria trouxe mais um esforço das autoridades contra o movimento antivacina. A partir de agora, pediatras norte-americanos podem se recusar a atender pais com filhos não imunizados. A resolução é uma tentativa de constranger famílias a imunizar as crianças e reacende um velho debate: vacinar faz bem ou mal?

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A grande maioria dos médicos tem calafrios ao ouvir essa pergunta. Hoje, a ciência considera a vacina como um dos maiores avanços na história da saúde.Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2 a 3 milhões de vidas são salvas anualmente com a vacinação. “É uma das intervenções de saúde pública mais eficientes e com maior êxito”, diz a instituição em seu site.

Como política pública, a imunização é essencial para erradicar doenças endêmicas e reduzir a mortalidade infantil, explica Carla Domingues, coordenadora do Programa Nacional de Vacinação do Ministério da Saúde. "Antes, tínhamos milhares de óbitos e casos de crianças com sequelas. Havia enfermarias especiais apenas para pólio, por exemplo. Hoje você não vê mais isso.", afirma.

Segundo a OMS, a mortalidade mundial por sarampo caiu em 74% de 2000 a 2010, graças à intensificação das campanhas de vacinação. Já a incidência de pólio diminuiu 99% entre 1998 e 2010. Apesar dos números, o assunto dá pano para a manga. Há basicamente três motivações por detrás da recusa em vacinar os filhos. A primeira, religiosa ("Deus deve decidir se meu filho adoece ou não"). A segunda busca evitar a “artificialidade” da vacina (mesmo que ela seja produzida com base em um agente da natureza, como fragmentos de vírus e bactérias). A terceira, por fim, questiona o lobby da indústria farmacêutica e teme supostas reações adversas, em um leque que vai do autismo à narcolepsia.

Você já deve ter ouvido algum pai ou mãe alertar quanto à possibilidade de uma vacina causar desde a própria doença a ser combatida até enfermidades mais complicadas, como autismo ou síndrome de Guillain-Barré (reação exagerada do sistema imunológico a um estímulo). Credite isso, sobretudo, ao médico britânico Andrew Wakefield.

Em 1998, ele espantou a comunidade científica com um estudo publicado na prestigiadíssima revista científica The Lancet. Ele analisou 12 crianças portadoras de autismo, das quais oito manifestaram os primeiros sintomas da síndrome apenas duas semanas após tomarem a tríplice viral, que protege contra caxumba, sarampo e rubéola. Conforme Wakefield, o sistema imunológico delas entrou em “pane” após os estímulos “excessivos” da vacina ao sistema imunológico. Resultado: uma inflamação do intestino que levou toxinas ao cérebro. Os resultados apareceram em jornais e tevês do mundo inteiro.

No entanto, uma série de investigações descobriu que algumas crianças voluntárias haviam sido indicadas por um escritório de advocacia interessado em entrar com ações contra a indústria farmacêutica. Em 2010, a The Lancet retirou o estudo de seu site. No mesmo ano, o Conselho Britânico de Medicina cassou a licença de Wakefield e ele não pôde mais atender qualquer paciente.

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Movimento antivacina brasileiro. Nos Estados Unidos e na Europa o movimento é relativamente forte - muito porque a vacinação é feita em clínicas privadas e fica a cargo dos pais, o que de certa forma retira da equação os agentes de saúde e seu trabalho de conscientização. Nos Estados Unidos, por exemplo, quase todos os estados liberam crianças das vacinas por motivos religiosos. No Brasil, contudo, a agitação ainda é incipiente.

“Temos visto esses questionamentos aumentarem, mas os pais ainda vacinam. Raramente há uma recusa. Aqui é mais comum o esquecimento do que a recusa”, explica Lessandra Michelin, coordenadora do Comitê de Vacinações da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

O motivo para a adesão mais forte na terra brasilis é simples: uma ampla política pública que inclui vacinar de graça a população e explicar, desde o pré-natal da mãe, a importância de imunizar o bebê. Assim, a cultura de proteção passa de mãe para filho. Isso ocorre desde 1976, quando foi instituído o Programa Nacional de Vacinação, que assegurou a oferta gratuita de doses pelo SUS e passou a obrigar os pais a imunizarem os filhos. Logo após nascer e antes de sair do hospital, por exemplo, o bebê nascido no Brasil precisa ter recebido injeções contra BCG e Hepatite B.

O trabalho vem dando resultados. Desde a instituição do Programa Nacional de Vacinação, pólio e febre amarela foram erradicadas no País. O Ministério da Saúde, aplica, hoje, as 11vacinas essenciais em cerca de 95% das crianças até nove anos: BCG, rotavírus, pneumocócica, veningocócica, tetra ou penta, poliomelite, tríplice viral doses 1 e 2, hepatites A e B, e febre amarela.

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Apesar da obrigatoriedade da vacinação infantil, inexiste lei que estipule uma punição para pais que não levem os filhos para a vacina. No entanto, há mecanismos de constrangimento.

Um deles é vincular o recebimento do Bolsa Família à vacinação infantil. Outro é dar liberdade ao médico para, no caso de uma criança não ser imunizada, contatar o Conselho Tutelar, que por sua vez pode acionar o Ministério Público para entrar com uma ação contra os pais. O artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece a obrigatoriedade da vacinação como parte de bons tratos para com a criança.

Esse constrangimento foi enfrentado em fevereiro deste ano por um casal de São José do Rio Preto, São Paulo, que ganhou fama após impedir a vacinação do filho recém-nascido. O hospital da cidade entrou com um pedido na promotoria da vara da Infância e da Juventude e o juiz decidiu que a criança deveria ser imunizada. Em sua justificativa, a mãe alegou que queria vacinar o filho na Bélgica, país de origem de seu marido e pai da criança.

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Mas religião, também, exerce sua influência aqui no Brasil. Foi o caso da campanha de vacinação contra o HPV em meninas de 11 a 13 anos em 2014, que enfrentou resistência da comunidade evangélica. A justificativa era de que, uma vez imunizadas contra o vírus transmitido sexualmente, as jovens se sentiriam seguras para iniciar relações sexuais.

No entanto, Lessandra Michelin, da Sociedade Brasileira de Infectologia, lembra que oposições a vacinas costumam ocorrer apenas em épocas nas quais as doenças estão controladas e não fazem mais parte do imaginário da população. “As pessoas falam esse tipo de coisa porque não viram a doença nem suas sequelas. O HPV é triste, pode causar câncer de colo de útero e metástase em meninas de 20 anos. Basta a vacina para prevenir. Algumas doenças estão voltando justamente por causa dessa falta de informação”, argumenta. É o que explica o surto de sarampo que ocorreu em fevereiro de 2015 na Disney de Anaheim, da Califórnia, EUA. Após o incidente, o presidente Obama chegou a ir à televisão pedir para os pais levarem os filhos às clinicas de imunização.

Faz mal? Vacina é um remédio. E, como qualquer outro, pode apresentar contraindicações e efeitos colaterais. Na maioria dos casos, alérgicos a um componente do medicamento ou pacientes imunossuprimidos (caso de quem enfrenta câncer ou tem AIDS) não podem receber injeção. Mas e quanto a indivíduos com a saúde em dia? É grande a possibilidade de aparecer alguma consequência preocupante.

“Algumas vacinas têm efeito colateral, sim, como febre ou dores. Mas, a nível de saúde pública, não há justificativa para deixar de vacinar uma criança. Isso pode causar surtos e infecções de doenças já erradicadas e que estão presentes em outros países”, diz a presidente Luciana Rodrigues, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Mas, se a injeção estimula a resposta do sistema imunológico ao inserir fragmentos de vírus no organismo, ela pode desenvolver a doença em questão? Esse é um dos argumentos do movimento antivacina, rechaçado, porém, por especialistas. A explicação seria que, muitas vezes, o jovem apresenta sintomas de uma doença não identificada, que os pais associam como reação à vacina. Ou seja, fazemos relações de causa e efeito em situações que, não necessariamente, estão relacionadas.

“Há quem fale que depois da vacina contra gripe você pega gripe. Mas a gente sabe que isso não faz sentido, porque a vacina tem um vírus morto”, diz Lessandra Michelin, da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Durante muitos anos se falava de histórias de crianças que morreram depois de tomar vacina. Mas aí na necrópsia se via que a criança havia morrido de outra coisa, mas que o momento coincidiu de ser após a aplicação”.

Lembra da tese do médico britânico fraudulento de que a tríplice viral causa autismo? Bom, mesmo após ele ser desmentido, o British Medical Journal publicou, em 2014, um estudo que analisou 95 mil crianças com base em um banco de dados de um plano de saúde. A conclusão foi de que a tríplice viral não está relacionada ao autismo, até mesmo em crianças com irmãos mais velhos portadores da síndrome. Note que a pesquisa compila 7,9 mil vezes mais pessoas do que a fraudulenta pesquisa de Wakefield, publicada na The Lancet e que contou com apenas 12 voluntários.

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Bom, mas obrigar a criança a levar uma série de vacinas consecutivas não sobrecarrega o sistema imunológico? Para as autoridades, não. No livro Recusas de Vacinas - Causas e Consequências, o epidemiologista Guido Levi, ex-vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, escreve que bebês desenvolvem a capacidade de responder a antígenos estranhos ao organismo antes mesmo do nascimento.

“Estimando-se a quantidade de vacinas às quais uma criança seria capaz de responder em determinado momento, calcula-se, de um ponto de vista teórico, que esse número seria de aproximadamente 10 mil. Se 11 vacinas fossem aplicadas simultaneamente, somente 0,1% do sistema imune seria utilizado”, afirma.