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Transtorno do jogo compulsivo é semelhante ao alcoolismo, mas preconceito impede tratamento

Com a iminência da liberação de casas de jogos no País, número de pessoas com o problema tende a aumentar

Por Hyndara Freitas
Atualização:
Os jogos de azar, incluindo bingo, caça-níqueis, jogos de carta, loteria e até bolsa de valores, podem causar compulsão em até 2% da população brasileira. Foto: Reprodução/Pixabay

Nos fundos de uma igreja na Vila Prudente, zona leste de São Paulo, há uma pequena sala com cadeiras encostadas nas paredes, uma lousa e banner pendurados por todos os cantos. Numa mesa, uma placa diz: "Só por hoje, não vou fazer a primeira aposta", introduzindo um dos grandes mantras das reuniões dos Jogadores Anônimos. Lá, deixa-se claro que não é possível resolver tudo de uma vez e que cada dia sem jogar é uma vitória.

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Entre homens e mulheres, engenheiros e comerciantes, mais velhos e mais jovens, todos buscam o mesmo objetivo: parar de jogar. Nas reuniões do 'JA', como é chamado pelos participantes, há pessoas em abstinência há 15 dias e, outros, há mais de 15 anos. Engana-se quem acha que o tempo longe dos jogos significa uma cura, pois, como um dos presentes na reunião disse, "a última aposta foi há 15 anos, mas a próxima aposta pode estar em qualquer lugar, a qualquer hora".  Por isso, ao fim de cada depoimento, os jogadores desejam "24 horas de paz e abstinência" a todos.

A compulsão por jogos é semelhante a outros vícios, como alcoolismo, tabagismo e outras drogas em geral. "Estimula as mesmas áreas cerebrais e o comportamento é bem semelhante, de ter um consumo compulsivo impulsivo, que, na verdade, a única coisa que tem de diferente é que não há o consumo de uma substância, mas tem um comportamento que se repete várias vezes na prática de uma atividade", explica Mirella Mariani, assistente de coordenação do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-AMJO) do Hospital das Clínicas.

 "Muitos acham que é 'sem-vergonhice', mas é uma doença", ouve-se de um dos jogadores durante a reunião. Com razão: diferentemente do vício em algumas drogas, o jogo é visto como um desvio moral, principalmente pela questão financeira, já que o jogador compulsivo geralmente perde muito dinheiro com a prática. O que poucos sabem é que, sim, é uma patologia, e atinge de 1% a 2% da população brasileira e que a prevalência do transtorno é diretamente proporcional à disponibilidade de jogos.

Num momento em que o projeto de Lei do Senado nº 186, que propõe liberar casas de jogos no Brasil novamente, tramita no Congresso, essa informação é preocupante. Mirella conta que o número de pacientes aumenta consideravelmente quando as casas de jogos eletrônicos estão oficialmente abertas. "A gente tem uma média de 120 casos novos por ano. Na época em que as casas de jogos eletrônicos estão fechadas, como agora, a gente tem um diminuição no número de pacientes. Entre 2004 e 2007, quando as casas de bingos estavam abertas, e tinha uma em cada esquina, a gente 'triava' cerca de 300 pacientes por semana."

E como um jogador descobre que é compulsivo? Através de 20 perguntas, que estão no site dos Jogadores Anônimos e no site do PRO-AMJO. Se o jogador responder sim a pelo menos cinco dos questionamentos - que procuram saber se o jogador já mentiu, perdeu horas de trabalho ou problemas familiares por causa do jogo - ele deve procurar ajuda. E os jogos podem ser variados: jogos de cartas, bingos, máquinas de caça-níqueis, loteria e até bolsa de valores, ou seja, tudo o que envolve apostas e aleatoriedade.

Ao perceber que precisa de tratamento, o jogador pode optar por alguns caminhos, que vão desde consultas com psiquiatras, tratamento psicológico ou a reuniões de jogadores anônimos. Em São Paulo, é possível optar pelo tratamento do PRO-AMJO, que tem várias etapas e tem acompanhamento multiprofissional. Na triagem, o paciente é avaliado por um clínico geral e por um psiquiatra, que testam suas funções cognitivas, para verficiar se ele tem algum déficit, e depois uma avaliação de enfermagem, tudo para que ele possa ingressar no ambulatório.

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"Na segunda fase, ele é dirigido para um tratamento psicoterápico individual ou em grupo em dois modelos de psicoterapia. Psicodinâmica, mais breve, e psicoterapia cognitivo-comportamental. Nesses dois modelos, ele fica de quatro a seis meses em tratamento e, ao fim desse período, ele é conduzido para uma equipe de qualidade de vida, onde fica em manutenção do tratamento pscioterápico. Ao mesmo tempo, ele segue o tratamento com o psiquiatra caso precise tratar das comorbidades, que seriam depressão, ansidedade, dificuldade de sono, tabagismo, alcoolismo, tudo o acompanha a dificuldade com o jogo, e também o acompanhamento clínico, se ele tiver questões como pressão alta, glicemia. A gente também tem programas paralelos ao atendimento clinico, que seriam medicação, atividades físicas, terapia de casal, tratamento familiar, que vão construindo esse ambiente mais confortável para o paciente durante seu próprio tratamento", detalha Mirella.

Se o jogador opta pelas reuniões dos Jogadores Anônimos, ele pode entrar em contato com um representante da associação por telefone e comparecer a um encontro no local mais próximo. O anonimato é essencial no JA, e a entidade é mantida pelos próprios participantes, sem ajuda externa. Durante os encontros, os jogadores podem contar suas histórias, falar de suas dificuldades e de suas conquistas, trocar experiências, construir amizades e conseguir ajuda.

Nas reuniões, também lê-se a literatura desenvolvida especialmente para o projeto, um coordenador fala dos passos do tratamento - são 12 passos, que vão desde reconhecer que é um compulsivo até passar o conhecimento recebido a outros jogadores. Muitos do que estão ali já tentaram terapias e métodos psiquiátricos, mas só com as reuniões conseguiram resultado. Outros, combinam o tratamento psicológico com o JA.

Seja qual for o tratamento escolhido, um fato comum é que ambos demoram a ser procurados pelos jogadores. Um dos participantes das reuniões disse que a maior parte dos que vão lá, é porque já tiveram muitos prejuízos e estão 'no último estágio do vício'. Segundo estudos feitos pelo coordenador e criador do PRO-AMJO, Hermano Tavares, os jogadores procuram tratamento por volta dos 40, 45 anos e, no caso de homens, que começam a jogar desde jovens, a procura só acontece após 20 anos de jogos. No caso das mulheres, que começam a jogar mais tarde (por volta dos 35 a 40 anos), o tratamento vem depois de cinco anos jogando.

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O estágio dos jogadores compulsivos é tão grave que, durante a reunião, percebe-se um fato em comum: a maioria não anda com cartões de crédito e débito e talões de cheques, que ficam sob os cuidados de familiares como esposas, maridos, filhos e irmãos. "É claro que, se eu quiser pegar meu dinheiro, eu pego. Eu sei onde eu tenho conta, basta ir na agência, mostrar meu documento e pedir o meu dinheiro. Mas, até eu chegar a fazer isso, eu tenho que estar muito louca", disse uma das jogadoras num momento. No caso de uma compulsão, todos os cuidados devem ser tomados, e não é à toa que um dos itens do Guia para Jogadores, distribuído nas reuniões, fala sobre "não se testar ou tentar", incluindo conselhos para afastar-se de casas de jogos e de pessoas que joguem.

Geralmente, ao chegar nas reuniões, os membros já passaram por grandes perdas por conta do jogo. Uns, perderam empresas, dinheiro que iria para a compra de um imóvel ou outro bem. Outros, afastaram membros familiares, ou chegaram muito perto disso. "Ele não me deixou por causa do jogo, ele me deixou por causa da pessoa que eu me tornava quando jogava"; "Minha mulher chegou a falar 'ou a máquina de caça-níquel ou eu'"; e "Fui demitido por causa do jogo" são algumas das frases ditas durante as duas horas do encontro.

Felizmente, depois de muitos anos de luta, os resultados são positivos. No Hospital das Clínicas, entre dez pacientes que procuram o tratamento, oito o fazem até o final. E, desses oito, 70% param de jogar. Já o Jogadores Anônimos não tem dados específicos, mas o coordenador de um dos grupos garante que a maioria para de jogar. "Alguns continuam frequentando muitos anos depois de parar de jogar, outros param e não vêm mais, cada um tem um jeito. Mas a maior parte se recupera e passa a ajudar outros."

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Em ambos os tratamentos, há uma condição: o jogador precisa querer se tratar. A família pode incentivar, acompanhar nos primeiros dias, mas não pode ser imposto. Ainda assim, vale ressaltar que o apoio de familiares e amigos é muito benéfico no tratamento - nas boas histórias ouvidas naquela sala do JA, todas destacavam o papel de um irmão, um filho ou um cônjuge na recuperação. "Se não fosse meu filho, eu nunca teria vindo aqui, eu não estaria há dois anos em abstinência", relembrou, emocionado, um dos presentes. Hoje, ele participa dos encontros e ajuda a associação sempre que pode, e não pretende sair, pois seu intuito é melhorar a vida de cada um que, como ele, já passou por esse problema.

Mais informações. O PRO-AMJO faz parte do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) e foi criado pelo psiquiatra Hermano Tavares. O ambulatório é formado por profissionais de diversas áreas, desde médicos e enfermeiros a psicólogos e advogados, todos voluntários, com exceção dos coordenadores. Para saber mais sobre o atendimento e tratamento, acesse o site ou entre em contato pelo (11) 2661 7805 e pelo email proamjo.secretaria@ail.com

O Jogadores Anônimos foi criado em 1957, em Los Angeles, na Califórnia, Estados Unidos. No Brasil, conta com salas de reuniões em 13 cidades brasileiras. Para conferir todos os endereços, acesse o site. Lá, também há as 20 perguntas para verificar se o jogador precisa de tratamento.   

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