Meios alternativos para o ensino eliminam sacrifício animal

Tecnologia favorece com desenvolvimento de modelos sintéticos que se assemelham à anatomia real

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Por Ludimila Honorato
Atualização:
Modelos sintéticos, feitos em cerâmica fria ou impressos em 3D podem substituir uso de animais no ensino. Foto: Pixabay

A educação se transformou com o passar do tempo, e é fato que os estudantes de hoje não aprendem da mesma forma que no tempo dos nossos pais e avós. Na universidade, as possibilidades se ampliam, e os cursos voltados para lidar com vidas - como medicina, veterinária e biologia - ganham novos meios para evitar o sacrifício animal e a utilização de cadáveres em sala de aula.

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Foi pensando em diminuir essa prática que a estudante de biologia Michaella Andrade, de 25 anos, desenvolveu em grupo um projeto de iniciação científica com métodos alternativos ao uso nocivo de animais no ensino. O objetivo é compilar e disponibilizar em um site, de forma gratuita, todas as possibilidades, como softwares, modelos sintéticos, artigos e material audiovisual.

"Tive dificuldade em encontrar alternativas, pois a maioria estava em língua estrangeira ou era comercializada de alguma forma. Além disso, acredito que os animais são possuidores de direitos como nós, animais humanos, então quanto menos utilizarmos animais não humanos em sala de aula, melhor", diz Michaella.

Apesar de ainda ter alguns animais nos laboratórios, a universidade em que ela estuda adquiriu um software de anatomia de aves que, segundo ela, é "super interativo". "Podemos estudar melhor a anatomia sem precisar matar uma galinha", exemplifica. Os universitários também montaram uma coleção de insetos feitos a mão com cerâmica fria para estudos.

Estudantes de biologia resolveram estudar insetos com modelos feitos a mão com cerâmica fria. Foto: Thiago Alcântara

Tecnologia favorável. A empresa brasileira de tecnologia Csanmek, em parceria com a norte-americana SynDaver, desenvolveu um humano e um cachorro sintéticos com textura e densidade similares às estruturas anatômicas reais. Com a novidade, é possível simular cirurgias - com cortes -, fazer dissecações e ter acesso a partes do corpo que dificilmente seria viável em cadáveres conservados por muito tempo.

"Nos inspiramos em soluções praticadas no exterior há pelo menos cinco anos e juntamos com a realidade e necessidade do Brasil, além de pesquisas que norteiam para esse tipo de tecnologia substitutiva", diz Claudio Santana, fundador da Csanmek.

Os produtos, que custam entre R$ 200 mil e R$ 700 mil, acompanham uma plataforma 3D de simulações de anatomia. O sistema permite que faculdades e hospitais se conectem para o envio e conversão de tomografias e ressonâncias magnéticas em três dimensões a fim de serem analisadas pelos estudantes.

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A plataforma 3D permite a análise de partes do animal e de exames enviados por hospitais. Foto: Carol Martins/Csanmek

Denise Aparecida Campos, diretora acadêmica de uma unidade da Faculdade das Américas, diz que o cachorro sintético será complementar ao curso de veterinária que terá início no próximo ano. "Os alunos terão contato com animais reais também, mas não para simulações. Essa medicina em que você testa no animal e se ele morrer tudo bem não é o que queremos. Nosso objetivo é que o profissional saia daqui para lidar com a vida", afirma.

Modelo sintético é feito com material que imita a textura e a densidade do tecido e órgãos reais. Foto: Carol Martins/Csanmek

Além do modelo sintético canino, a faculdade conta também com robôs com pelos, mesas digitais para estudo de anatomia e fisiologia, além de impressoras 3D que possibilitam aos estudantes ter qualquer tipo de órgão nas mãos.

Ética. Os meios alternativos, porém, ainda não eliminam totalmente o uso de animais e cadáveres no ensino. A discussão ética sobre a utilização ou não de animais nos cursos de veterinária, por exemplo, cai no ponto da origem do animal. "É preciso saber de onde ele veio, a forma que ele foi cuidado, o motivo que morreu e como morreu", explica a médica veterinária Vania Plaza Nunes, diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal.

"Se o animal é doado pelo dono para pesquisa, é uma possibilidade interessante, mas é absolutamente inadmissível quando são mortos para essa finalidade se existem métodos alternativos", diz Vania. A médica comenta que em alguns Estados do País, serviços de controle e acolhimento de animais usam a eutanásia para, depois, doar o animal.

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Essa necessidade de verificação somada aos protocolos necessários para triagem, processamento e conservação dos corpos pode demorar em alguns casos. Assim, os métodos alternativos seriam mais eficazes.

Situação semelhante ocorre nos cursos de medicina. "A grande vantagem dos modelos sintéticos começa com a dignidade ao corpo humano. A gente consegue estudar os órgãos sem corromper um corpo", diz Fernando Teles de Arruda, coordenador-adjunto do curso de medicina de uma unidade da Universidade de São Caetano do Sul (USCS), que utiliza o modelo humano da Csanmek.

No livro Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação – pela ciência responsável, o biólogo Sérgio Greif diz que atividades no ensino com animais acabam dessensibilizando os estudantes. "Estudos mostram que crianças que se identificam com as atividades de dissecação, ao contrário do aprendizado e do gosto pela ciência pretendidos, tornam-se mais facilmente agressoras dos seus colegas", escreve. "A progressão da dessensibilização é notada quando muitos animais utilizados em dissecação aparecem mutilados, sem ter sido esse o objetivo da aula", completa.

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Aprendizado. Tanto Vania quanto Arruda concordam que os meios alternativos não prejudicam o aprendizado. "Do ponto de vista educacional, o modelo sintético preserva a relação de tamanho, textura e cores. Isso é muito importante e acaba se distorcendo com o tempo quando se pega um corpo de cadáver", diz o coordenador da USCS. Além disso, a repetição, fundamental para o desenvolvimento das habilidades de um médico, também é viável, o que elimina o "descarte" dos corpos.

A veterinária acrescenta que, junto com o aprendizado clínico, há o conceito ético. "Se eu parto do princípio que pode matar e usar modelos inadequados, estou compartimentalizando meu interesse. O ensino prescinde que, durante o aprendizado, eu tenha responsabilidade e respeito pelo indivíduo vivo", afirma Vania. Segundo ela, os meios alternativos criam profissionais com a mesma ética e capacidade dos que aprendem com métodos tradicionais.

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