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Às vezes exagerada, representação de Asperger é positiva na ficção

Especialistas comentam os comportamentos retratados pelas personagens Benê, de 'Malhação', e Mária, do indicado ao Oscar 'Corpo e Alma'

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Por Ludimila Honorato
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A atriz Daphne Bozaski, de 'Malhação: Viva a Diferença', interpreta Benê, uma jovem com Síndrome de Asperger. Foto: Estevam Avellar/Globo/Divulgação

A mulher sobe as escadas e um homem, com pressa, esbarra nela e toca seu braço brevemente. Ela para. Quase nenhum músculo se mexe. Parece que tudo parou ao redor e o toque durou mais que o necessário. Com semblante neutro, ela segue a vida. Trabalha, conversa e se aproxima pouco das pessoas e faz visitas periódicas a um psicólogo.

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O trecho acima é um resumo da personagem Mária (Alexandra Borbély), protagonista do longa-metragem Corpo e Alma, indicado ao Oscar 2018 como melhor filme estrangeiro - categoria levada por Uma Mulher Fantástica. Na produção húngara, a inspetora de qualidade apresenta sintomas da Síndrome de Asperger, um tipo de autismo mais leve.

A condição também foi retratada na última temporada de Malhação: Viva a Diferença com Benê, interpretada por Daphne Bozaski. Diferente dos quadros mais graves de autismo, pessoas com Asperger têm mais facilidade de socialização e desenvolvimento cognitivo - embora essas características ainda sejam um desafio e dependa da realidade de cada indivíduo.

O E+ listou alguns comportamentos dessas personagens e conversou com especialistas de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), gerenciado pelo Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (Cejam) e que atende crianças e adolescentes gratuitamente, para que os analisassem. Segundo as profissionais, a representação da pessoa com Asperger acaba sendo exagerada, mas pode ser uma forma de fazer o espectador entender melhor a condição.

Interação social e contato físico. Em Corpo e Alma, Mária parece pensar duas vezes antes de adentrar o espaço destinado às refeições dos funcionários na empresa onde trabalha. Quando senta com alguém, fala apenas o necessário ou se cala. Assim como ela, Benê, da novela global, demonstra algum desconforto com abraços, mãos dadas e beijos.

"O autismo, principalmente no Asperger, tem tipos de dificuldades na interação social, no contato físico. [A pessoa] leva tudo ao pé da letra, se alguém falar em linguagem metafórica, terá mais dificuldade de compreensão", diz Thais Dantas Takemoto, psicóloga no Caps. Ela explica ainda que, nessa condição, a pessoa também tem dificuldade em demonstrar afeto, dar nome ao que sente e considera o toque como algo invasivo.

No caso de Mária, o psicólogo com quem ela se consulta - que parece ser o mesmo desde a infância - pergunta se ela tem animal de estimação e sugere que ela treine o toque, como passar os dedos suavemente pelo rosto. Ela põe a orientação em prática de diferentes formas, sempre sozinha antes de conseguir se sentir à vontade com outra pessoa.

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"Às vezes, é indicado esse método de treino das habilidades sociais para que a pessoa olhe para outras questões às quais tem aversão, para enfrentar esse medo", afirma Thais. "Como há dificuldade cognitiva, acaba sendo mais abstrato, então a pessoa se apega mais a comportamentos repetitivos, é uma questão de treino mesmo", explica a também psicóloga do centro, Roberta Silva Oliveira.

No filme 'Corpo e Alma', Mária, vivida pela atrizAlexandra Borbély, apresenta sintomas de Asperger. Foto: Youtube/Reprodução de 'Corpo e Alma - Trailer'

Seguir estritamente as regras. Como inspetora de qualidade, qualquer milímetro fora do lugar é sinal de que o produto não é bom o suficiente para Mária. Esse comportamento, no entanto, pode ser mais uma alegoria, diferente da realidade. "Não é por que a maioria leva tudo ao pé da letra que vai sempre respeitar [as regras]. Como toda criança, ela vai questionar e, na verdade, vai seguir o que acha certo", afirma Thais. "Antes de ter a síndrome, ela é uma criança."

Não expressar emoções. Com semblantes frequentemente neutros, tanto Mária quanto Benê parecem não refletir aquilo que dizem sentir - em parte pela dificuldade de nomear o que sentem - e raramente sorriem.

"Varia muito de cada pessoa, não é regra. Tem pessoas que podem entender e até fazer piadas, se expressam, demonstram raiva", diz Roberta. "Quando vão retratar questões como essas na ficção, talvez se coloque de forma estereotipada para ter entendimento maior pelo público, mas no dia a dia não é tão rígido assim", comenta.

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Ótima memória. Mária lembra da primeira e da 17ª frase que o personagem Endre disse a ela após alguns encontros. Um tanto exagerada, a característica tem um tanto de verdade. "[A pessoa] não vai dominar todos os assuntos, mas o que chamar atenção, ela vai fazer uma investigação que vai parecer especialista. Vai querer conversar sobre aquilo e pode até ficar brava quando outros não demonstram o mesmo interesse", diz Roberta.

Em crianças, Thais comenta que a fixação por determinado assunto fica mais evidente e exemplifica com o interesse por dinossauros, a ponto de memorizar todos os nomes de espécies.

Ouvir música para melhorar o humor. Benê quer ser uma grande pianista e viu na música uma forma de se expressar e liberar energia. Já Mária, por orientação psicológica, ouviu uma imensa lista de gêneros musicais diversos sem se interessar por nenhum - ou quase nenhum. "Pode ser [um recurso] utilizado, dependendo do interesse, da sensibilidade que a pessoa desenvolve para música, mas não se pode dizer que vai funcionar com todo mundo", afirma a psicóloga Roberta.

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Alguns autistas, principalmente com níveis mais graves, se incomodam muito com barulho e aglomerações de pessoas conversando no mesmo ambiente. Para quem consegue adotar a música como recurso no tratamento, além de despertar emoções e ajudar na nomeação de sentimentos, pode ser um ponto de partida para iniciar uma conversa, o que melhora a interação social.

Ficção versus realidade. A psicóloga Thais pontua que, no caso, colocar personagens com Asperger nas tramas é positivo, pois mostra que a pessoa pode ser incluída, ter amigos e uma convivência normal. "Mas se esquecem de que não é mágica. Se não tem suporte familiar, não consegue transpor os obstáculos", pondera.

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"Só o fato de abordar o tema, para ser olhado e trabalhada a questão da inclusão, já é importante, mas na nossa prática não é tão fácil a adaptação nos espaços", completa Roberta.

Trabalho em família.  Além de trabalhar com crianças e adolescentes autistas no Caps, a terapeuta ocupacional Roberta Gastadello Tavolaro Santos atua com as famílias dos pacientes. "Tentamos dar os recursos para que a família saiba se adaptar de acordo com a nova rotina, porque [Asperger] não tem cura e tem de buscar atendimentos especializados. É trabalhar a aceitação da pessoa como ela é, como uma condição, não como doença", afirma.

Com a questão melhor resolvida dentro de casa, outro ponto é pensar em recursos concretos para que a pessoa com a síndrome aprenda a lidar com outros ambientes, como escola e trabalho. Um deles pode ser a organização da agenda, para que a pessoa se prepare para o tempo que precisará ficar em determinado local e o que convém fazer, diz a terapeuta.

Os sintomas da Síndrome de Asperger, assim como de quadros mais graves do autismo, são geralmente percebidos ainda na infância. "Isolamento social, criança mais rígida nas suas condutas, principalmente nas habilidades sociais", pontua a especialista.

Ela ressalta, porém, que é preciso avaliar os casos individualmente e pensar em estratégias de acordo com cada núcleo familiar. "O que é tranquilo para mim pode não ser para o outro. Tem de ver a necessidade de cada família."

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