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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|'Será que minha filha vai me reconhecer?' - pergunta pai, horas antes de reencontrar menina

Depois de dois anos de buscas, pai reencontra a filha no outro extremo do país

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Atualização:

O reencontro de pai e filha em Florianópolis, a 3500 km de onde se viram pela última vez. Foto: Fabricio Sousa

(Nota do blog: Fernando não via a filha, Letícia, 3, desde dezembro de 2014  A menina foi levada pela mãe de Belém, onde o ex-casal morava. Depois de meses procurando pela filha e de entrar na justiça para reaver o direito de vê-la, Fernando e Letícia se reencontraram no último sábado, 01/10, em Florianópolis - 1 ano e dez meses depois e a 3500 km de onde se viram pela última vez.)

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Texto de Fernando Gurjão Sampaio, 38 anos, advogado, pai de Letícia.

Será que vai me reconhecer? Será que virá comigo?

Era só o que pensava enquanto aguardava a conexão no aeroporto de Brasília. Também foi o pensamento permanente nas últimas semanas, medo do pai afastado da filha, quase dois anos distantes em serem nada mais que estranhos. Não tive chance de me despedir, só um buraco enorme no peito, pedaço de mim arrancado de forma bruta, ninho onde o pássaro da saudade colocava ovos de pedra todos os dias. Pesado. Pesado.

Será que vai me reconhecer?, perguntava-me no táxi a caminho da casa dela, enquanto segurava o choro e tentava controlar a respiração. O que falar? Do que ela gosta? Quanto será que calça? Como pode um pai não saber qual o tamanho da filha...? Eu, que sempre fui pai, não sabia. Mínimas coisas que sangram enormemente, mas viver é enfrentar.

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Na portaria, de longe vejo a menina que se estica curiosa para ver seu pai. Minha menina. Os primeiros minutos são de quase absoluto silêncio, dois estranhos pai e filha, vítimas das circunstâncias da vida.

Entramos no táxi. Ela me olha fixamente estudando cada detalhe do meu rosto. Outras vezes, muitas vezes, faz o mesmo com o rabo do olho. Vem no meu colo, encantada, como se estivesse numa carruagem. Primeira parada, shopping, pois teu pai quer comprar um presente para ti, nada muito caro, uma boneca, um cavalinho, um cachorro e um dragão. Mais do que isso, ela correndo comigo pelos corredores da loja, feliz feliz, felizes eu e ela.

Pouco depois, logo depois, enquanto comíamos algo, ela me olhou e pulou no colo, me agarrou e reinou comigo. Me chamou de papai e me beijou. Foi difícil segurar o choro. Queria soltar toda a dor de dois anos afastados, expurgar sofrimento, mas não queria mais chorar, ainda mais com ela ali, no meu colo. Depois de tanta noite insone pensando naquele momento, por que chorar agora com ela ali, me agarrando como se não houvesse amanhã?

Verdade que não demorou nada para entender quem somos. Nunca esqueceu. Nunca esqueceria. As músicas que cantava para ela dormir, lembra de todas. Não sabe mais as letras, mas sorriu carinhosa quando as cantei novamente.

Os dias seguintes foram assim. Brincar no parque, papai conta história, me embala alto, macaco te deu bom dia, deixa que toco sozinho, papai te ama, papai mora no meu coração. Andamos muito e vimos a cidade. Pegamos ônibus e fizemos piquenique. Pediu colo e deitou a cabeça no meu peito para ficar em paz. Aprendeu a palavra cangote e não saiu do meu. Num restaurante na beira da praia quis dançar comigo. Rodamos na pista, agarrados e risonhos. Já de tardinha, pegou no meu rosto e disse que éramos parecidos, a sobrancelha, os cílios, os olhos, o nariz e cabelo. As mãos. A pele. Várias vezes a flagrei me olhando atentamente, como se me decorando, um riso lindo no rosto encarando papai. Viu os irmãos, os avós e primos, todos afastados. Quer brincar.

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No domingo expliquei que pegaria um avião e voltaria para Belém, mas que voltaria logo para vê-la. Ficou triste. Fez chorinho e disse não. Depois, papai, não vai e papai, não demora. Por fim, tô com saudades de você, papai. Volta logo.

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Dois anos distantes e bastaram dois dias e somos quem sempre fomos. Pai e filha. Nada vai apagar ou mudar isso. Seja onde for serei pai. Muito menos por mim, muito mais por ela.

Hoje me despeço dessa cidade linda onde mora minha filha. Cidade que, por isso, também vai ser um pouco minha. Fazer de tudo para vencer gastos e distância e estar aqui, onde preciso estar, vendo minha filha crescer. Agora, ando pela cidade que não é mais tão estranha, pois nela está meu coração. E voltarei. Em breve voltarei para mais uma dose de amor infindável que nunca se apagará. Sou pai, não um nome escrito a lápis em papel qualquer, facilmente apagado por qualquer vontade.

Sou pai.

Leia mais: Nenhuma de nós sobreviveria a um Big Brother materno 

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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