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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Não podemos ser julgadas por cuidar dos nossos filhos

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Atualização:

A repórter egípcia Lamia Hamdin pegou o filho na creche e continuou a trabalhar Foto: Estadão

Todo repórter sabe o que a palavra "dobrar" significa. Vai ter de trabalhar a mais e não adianta chorar. Você até tem o direito de dizer que não pode mas vai ficar "marcada" além de ouvir, entre outras coisas, que "deveria ter escolhido trabalhar em banco" - resposta clássica sugerindo que você que tem filho pequeno e quer ter o mínimo de rotina com ele deveria ter um emprego em horário comercial.

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A repórter egípcia Lamia Hamdin deve ter recebido um telefonema da chefia no final de seu turno de trabalho pedindo para que "dobrasse". Bem na hora de buscar seu filho pequeno na creche. Ou recebeu um telefonema da creche, dizendo que o menino estava doente. Ou os dois, como esclareceu ao site de notícias Al-Watan, do Qatar: "Meu filho estava doente e naquele dia eu acabei trabalhando mais do que esperava. Por isso, tive de buscá-lo na creche. Não podia deixá-lo em qualquer lugar", disse Hamdin.

Não sabemos se ela tem marido e, se ele existe, por onde andava. Não sabemos se ela tem mãe ou pai vivos e se eles, no caso, poderiam ajudar. Não sabemos sequer se ela pediu ajuda. Sabemos que Lamia buscou seu filho na creche e, com ele no colo, prosseguiu o seu trabalho de repórter fazendo entrevistas na Universidade do Cairo. Super mãe e super profissional? Que nada. A mãe-repórter foi fotografada por Mohamed Abdel Nasser, um estudante da própria universidade, que além de registrar o momento publicou a imagem em seu Facebook junto a uma série de insultos criando, inclusive, uma hashtag denegrindo Lamia, seu profissionalismo e sua maternagem. Muitos defenderam a repórter, mas outros a acusaram de "falta de profissionalismo" e pediram, inclusive, sua demissão.

A repórter egípcia Lamia Hamdin e seu filho de quase dois anos Foto: Estadão

O Egito é um país "onde a mulher só serve para ficar em casa, fazer comida e cuidar de filho". Quem me conta isso é minha amiga e ex-repórter da BBC Andrea Wellbaum, 40 anos, que morou no Cairo por sete meses em 2007 e, cada vez que saía à rua para fazer uma reportagem, lidava com olhares de reprovação e investidas machistas. Ela conta que até as profissões que por aqui são exercidas majoritariamente por mulheres lá são apenas para homens. "Acho que os egípcios ficam indignados quando vêem uma mulher como ela expressar a força que tem", opina. "Uma moça como essa ameaça todo o padrão ao qual os homens estão acostumados", completa.

Mas quem dera as mulheres fossem criticadas assim apenas no Egito. Aqui pertinho de nós, mulheres que são mães e se dividem entre filhos e carreira também são julgadas publicamente e ouvem bobagens a todo momento. Dia desses participei de um post sobre o assunto em um grupo de mães do qual faço parte no Facebook. Todas tinham pelo menos uma história para contar.

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"Eu queria que você voltasse a ser como era antes (de ser mãe)", vaticinou uma chefe (mulher e com filhos) à subordinada que, olha só, quis recuar um posto na empresa para ter uma agenda mais flexível e passar mais tempo com a filha.

"Você pretende engravidar?", ouviu uma mulher em uma entrevista de emprego para o qual não foi escolhida, aliás. Será por que respondeu que "sim, ser mãe é meu sonho"? (Algum homem já teve de responder a alguma questão semelhante ao concorrer a uma vaga?)

"Você vai ter de trabalhar a mais para compensar o tanto que vai faltar para fazer exames", ouviu outra ao anunciar a gravidez no escritório.

"Antes de ser mãe, você é engenheira/médica/professora/jornalista." Essa é clássica, porque é repetida por todas as chefias.

Há mulheres demitidas logo após a licença maternidade, mulheres que tiveram de trabalhar informalmente durante a licença, que ficaram sem salário, que perderam clientes, que ouviram piadinhas e desaforo em vez de parabéns. Sejam bem-vindos. O Egito também é aqui.

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Em alguns casos, fazer "cara de alface" resolve. Em outros, a mulher tem que se posicionar. Foi o que fez Hamdin. A repórter veio a público para dizer que trabalha porque precisa, que não fez nada de errado e rejeitou o título de heroína dado por alguns. Ontem um colega de emissora, o correspondente Bahaad Eltawel, comemorou pelo Twitter o convite recebido pela repórter para uma audiência com o presidente do Egito, Abdul Fatah Khalil Al- Sisi. O jornal "The Cairo Post" confirmou o encontro, e disse ainda que "Sisi" elogiou a postura responsável de Hamdin como mãe e profissional.

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Em um país onde a mutilação genital feminina ainda existe, onde as mulheres são estupradas nas ruas e à luz do dia, a atitude de Hamdin de andar de calça jeans, cabelos soltos, filho em uma mão e microfone na outra pode ser mais revolucionária do que nossa cabeça latino-americana inicialmente possa compreender. Mas, por aqui, também precisamos fazer nossa revolução um pouco por dia e a cada vez que sofremos preconceito por querer fazer o óbvio: cuidar bem de quem colocamos no mundo.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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