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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Carta às mães e aos pais das crianças banguelas

O tempo não pára, já avisava o Cazuza

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Atualização:
 Foto: Estadão

Parece que foi ontem que ele necessitava de você para tudo - para se alimentar, manter-se limpo, saudável e feliz. Mas, de repente, está aberta a temporada do "ele não precisa mais de mim", prepare-se. Você pode achar que eu estou exagerando, mas logo as primeiras evidências começarão a aparecer. Embora seu filho seja menor que a própria mochila, não vai aceitar que outra pessoa a puxe, deixa-eu-mamain! Ainda será você a escolher os alimentos da lancheira, mas ele vai se alimentar sem a sua ajuda, talvez sozinho ou com o auxílio de outra pessoa que não você. Sim, haverá uma outra uma mulher por quem seu filho vai se afeiçoar fortemente logo depois que colocar os pés na escola.

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Se as tais verdades universais existirem, esta é uma delas: os filhos não são da gente, são do mundo. E a cada dia riscado no calendário uma mudança se desenha, nem sempre visível aos nossos olhos em tempo real, ainda bem.  As pequenas despedidas da infância acontecem no silêncio e são facilmente confundidas com a recuperação da nossa autonomia - quando eles preteriram o colo para começar a engatinhar e explorar o mundo ou quando deixaram o peito para experimentar outros sabores, estávamos tão cansadas que parecia mais um alívio do que um sinal de que sim, nossos filhos estavam crescendo. Mas agora que ele vai para a escolinha passar uma grande parte do dia longe de você, tudo ficou mais claro. Seu filho vai mostrar que está pronto para, literalmente, andar com as próprias pernas e esse grito de independência pode doer. 

Mas não é o primeiro, nem o segundo e nem o terceiro passo que eles darão rumo à idade adulta e que facilmente passam despercebidos pela gente, ou que doem quando a gente se dá conta que o tempo não pára, como já avisava o Cazuza, em tempos longínquos de acento diferencial. Em vez de entrar na neura de ficar de olho em tudo para que eles logo estejam prontos para a vida, tem que começar a ler logo, subtrair, dividir e multiplicar enquanto aprende inglês, natação e futebol, curta as coisas que eles ainda não sabem. Cada birra fora de hora e xixi na cama têm a sua beleza, pode acreditar. A letra torta, o "esse" no lugar do cê-cedilha, os dedinhos para ajudar na hora da soma, as concordâncias erradas não voltam nunca mais. Depois que você disser que o fofo "buticaba" é, na verdade, jabuticaba, acabou, mais uma fase deles ficou para trás.

Confesso que estou saudosa porque meu filho ficou banguela. Os dentes incisivos centrais superiores estiveram moles por meses a fio e eu não ofereci nenhuma ajuda para que caíssem logo: não ensinei aquele truque de amarrar o fio de dental no dente e depois na fechadura da porta, comum da minha infância, nem ofereci maçãs duras para que ele mordesse e desse uma ajuda à mãe natureza. Em vez disso fiquei contemplando aqueles dentinhos de leite entortando, torcendo egoisticamente para que o tempo parasse e eu pudesse curtir mais um pouco essa brisa fresca e leve trazida pelos sete anos do meu filho, que já é independente e sabe cuidar do próprio corpo e das próprias coisas e ainda não tem vergonha de sorrir seu riso já meio desalinhado para as infinitas possibilidades que a vida, que é bonita, é bonita e é bonita, insiste em lhe oferecer.

Mas ontem tive que agir, porque é isso que as mães e pais fazem quando o caos se instala. Fomos à dentista, que viu que já não havia mais tempo a perder: ou a gente abria caminho para o novo ou a situação podia se complicar, já que os dentes definitivos, com todo o peso que essa palavra tem, já haviam se instalado, mesmo sem ter muito por onde. E assim, anestesiados, enfrentamos a nova realidade, choramos juntos, cada um pelo seu motivo. Minutos depois começamos a nos apaixonar pela etapa seguinte,  que promete ser tão legal quando esta que acabou de se encerrar. "Até que não doeu tanto, viu mamain?", disse Samuca. É mesmo, filho, doeu só um pouquinho.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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