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Crônicas do cotidiano

Diferentemente igual

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Por Ricardo Chapola
Atualização:

Se fosse pra ser por semelhanças, simples: não ia ser. Nada ia ser direito a bem da verdade. Porque para ser a dois, sim, preciso é sempre um bom arranca rabo, por menor que seja. Só assim há faísca, só assim há fogo. Fogo: o mesmo que queima os desavisados e aquece coraçõezinhos solitários. Farofa não é farofa sem pimenta; Romeu seria chulezento demais sem a doçura e a textura macia da engoiabada Julieta. Só dá samba se tamborim batucar o amor que brota no azedo da tristeza, pode ver. Se tudo fosse pelos iguais, pode ter certeza que a vida toda não teria a menor graça. Tudo seria o repeteco de ontem, passeios em torno do mesmo quarteirão - a insipiente decisão de transformar grandes expedições pelas pradarias virgens da vida numa voltinha pela praça. Poucas aventuras, quase nenhuma história pra contar, pra cantar, pra encher os versos da poesia. Divergências enobrecem, lastreiam o rolo todo, seja lá em que pé ele esteja, engatinhando, vingando, indo aos trancos e barrancos ou já degringolando. Ainda bem, se não só existiriam ou só panelas, ou só tampas. Daí então nunca iríamos conseguir encontrar os nossos respectivos encaixes. De repente me senti uma panela. Ou uma tampa, por ser meio chato, sei lá. De repente acho que ela também se sentiu assim. Ela fala mansinho, eu não. Mansinha do tipo de poucas cerimônias, desapegada dos caprichos que, na hora, pra agradar, vá lá, eu superestimei. Tem uma risada deliciosa, diferente da minha sem ritmo, desafinada. Ela é independente. Eu também, embora ela não deva achar. Está numa vibe cool. Pode até ser: ela opera no rock n'roll da FM enquanto eu, eterno barnabé, cavalgo com meu pangaré pelas bandas da chamuscada AM. Ela tem tatuagem; eu não, mas não acho que isso queira dizer alguma coisa. Posso fazer,há tempo e 1,86m de pele em branco para os mais abstratos rabiscos. Se bêbados, nossas contagens nunca batem - aquele tipo de diferença boba que ganha uma tremenda carga de importância quando estamos com umas e outras na cabeça. Ela jurava ter 17 degraus na escada do restaurante, 112 palitos no paliteiro e, pelo menos, 20 pessoas com meias brancas no mesmo lugar que jantávamos. Nas minhas contas, eram 24 degraus, uns 200 palitos e, no mínimo, uns 10 com os pés alvos de algodão.Tudo diferente assim porque, talvez, eu estivesse mais bêbado. Talvez ela. Mas o que importa? As duas garrafas de vinho estavam deliciosas, deixavam nossas bocas mais vermelhinhas. A dela mais do que já estava por causa do batom que usava naquela noite. Estava linda. De repente eu era a panela, ou a tampa. E ela também. De repente, todas as diferenças eram assim, justinhas: ela era aquilo que eu não era; eu tinha aquilo que ela não tinha, e podíamos trocar essas figurinhas para completar um álbum . Tudo então começou a se atrair. A começar pelas bocas, vermelhinhas de vinho.

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