Foto do(a) blog

Crônicas do cotidiano

A maior das crises

Não foi nenhum jornal, nem a conversa que ouvi entre as duas senhoras na saída da quitanda, ambas aproveitando a alta do preço da alface para apoiar uma engenhosa teoria sobre o cataclismo, que me convenceram de que a humanidade está em crise. Nunca achei o contrário, embora eu mesmo sempre tenha atribuído ao fato outras causas bem mais simples que aquelas que tornavam a saladinha do almoço das senhoras um pouco mais salgada.

PUBLICIDADE

Por Ricardo Chapola
Atualização:

Deposito, basicamente, toda minha crença sobre a crise do homem moderno na abolição dos botões. Sim, os botões com os quais, algum dia, eu e você, leitor (a), já mantivemos a íntima relação baseada em apertões aqui e acolá sem qualquer pudor. Eles, cujas cores mil fisgam nossos dedos tão ávidos por pressão, estão virando o mico leão dourado de nossas selvas de pedra. Eu diria até que não se vê mais tantos botões como antigamente.

PUBLICIDADE

O homem nunca mais será o mesmo quando os botões forem extintos de uma vez por todas. Se realmente sumirem do mapa, serão jogados no esquecimento e no vazio da modernidade anos e anos de descobertas proporcionadas pelo toque de um dedo curioso. Evoluímos a espécie ao saber que o botão verde liga, e o vermelho desliga; decretamos feriado nacional quando descobrimos como chamar o elevador sem precisar assobiar e gritar: "Elevador, quero subir pro 10º"; soltamos rojões depois de perceber que a comida fica quente ao simples clique do "Aquecimento" no micro-ondas.

A modernidade é vazia, disse o autor americano Marshall Berman, cuja máxima, que também virou bordão de (pseudo) intelectuais modernos, é aplicável à minha tese dos botões. Vivemos numa constante vertigem, contaminados pela ideia de um culto excessivo à imaterialidade estendido ao nosso círculo de amizades, ao trabalho, ao amor e sobretudo, meus amigos, aos botões.

Não bastasse alimentarmos nossos bichinhos virtuais, conversamos por MSN e adicionarmos mais um amigo ao Facebook, hoje temos de lidar com a árdua sensação de fingirmos estar apertando um botão.

Steve Jobs é o inventor da desinvenção. Patrono da família dos I's, imponente na modernidade com seus membros iPod, iPhone, iPad, iMac [...], ele transformou o botão num mísero e vazio conceito funcional. Pegou seus I's, meteu uma telona plana e pôs apenas um botão que nem mesmo se parece como um. O resto é pura dissimulação de gozo: você bate o dedo na tela assim como se estivesse apertando um grande e atraente botão e pronto, o fenômeno acontece. Um verdadeiro sacrilégio!

Publicidade

Tento me esquivar do prenúncio de uma crise irreversível da humanidade, tanto quanto do sumiço de nossos queridos botões. Enquanto essa minha filosofia nostálgica não excitar a saudade nos dedos dos homens modernos, precisarei eu dar o braço a torcer. Largar mão dos botões e aprender os novos métodos para se chamar elevador, ou esquentar a comida, tudo isso assistindo, com aperto no coração, a Steve Jobs transformar história num grande e vazio conceito funcional. Tadinhos dos meus amigos botões.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.