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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Visita ao zoológico

Hoje o animal come, dorme, se reproduz quando lhe atiram uma leoa à jaula. Começa a sofrer de doenças que nunca antes leão algum sofreu, solto.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»É a coisa mais banal do mundo. Você vê um leão na natureza selvagem, exuberante, potente, e de repente é tomado pelo irresistível desejo de tomar aquilo para si. Aquela beleza pura e bruta, aquela beleza intocada. Agora o leão está enjaulado. Cinco vezes por dia você o admira. A forma como ele caminha, a forma como ele come, como respira. Não há muito para ver mas tudo o que você vê agrada profundamente. O leão é seu, selvagem, e você o admira.

Dia após dia, contudo, sua pele perde o viço, seu pelos caem em tufos grossos, sua juba desmorona. Seu olhar embaçado e sem brilho de tanto se esforçar para ver além da jaula já não vê mais nada. Olha para baixo o tempo inteiro, com a cabeça pesada. Com o corpo pesado, passa os dias lambendo as feridas não cicatrizadas.

Você anima o leão com petiscos e o exibe orgulhoso aos amigos. Vejam o que encontrei. O meu leão. Os mais delicados olham para o outro lado, mas a maioria aplaude. Uns, mais toscos, mais distantes de tudo, só conseguem pensar em: preciso de um desses para mim também. Como ficaria bem, no meu quintal, esse magnífico bicho que não ruge não ameaça não foge, parece que não dá trabalho algum.

Antigamente ele dava trabalho, como dava trabalho, o rei da savana. Hoje o animal come, dorme, se reproduz quando lhe atiram uma leoa à jaula. Mal percebe quando a tiram de volta. Começa a sofrer de doenças que nunca antes leão algum sofreu, solto. Catarata, gota, depressão. Seu dono, contudo, que em todos os lugares é conhecido como o dono do leão, enumera os benefícios do cativeiro: banhado, escovado, alimentado, saciado; o que mais um bicho poderia querer?

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Na verdade está tão convencido do que diz e pensa que em pouco tempo adquire outro leão, um espécime mais jovem, mais forte, mais potente. Não sabe ainda o que faz com o velho animal. Não sabe se o abate ou doa ao circo, se o devolve à savana onde, sabe, o bicho não duraria uma semana. Banguela e triste, vira um estorvo.

Magicamente, some.

Logo o leão jovem segue pelo mesmo caminho. Seria impossível notar, aliás, que não se tratava do mesmo leão, se um não conhecesse todos os detalhes. O dono, contrariado com a ingratidão do bicho, que agora considera muito dispendioso, um dia se farta e manda abater também o outro, o novo. Inspirado, enfim descobre o real problema. Os leões, é claro, não prestam, com sua índole preguiçosa e ingrata.

No dia seguinte, puxa o pano da jaula diante da platéia multiexcitada. Lá está ele, selvagem e cheio de energia, ereto, recém-adquirido. Socando o peito e mostrando os dentes. O gorila.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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