arte: loro verz
Atravesso o Atlântico para ir a um congresso em Portugal. Finda a missão, os caminhos se bifurcam. Ando. Ando muito. Nas ruas ninguém me percebe. Nada me sabe: pavimentos, lojas, árvores, postes, placas, pombos, cães. Passo incógnito. Não sei se me apago ou se me reafirmo, sem referência em terra estrangeira.
No exterior lembro de uma famosa entrevista de Nelson Rodrigues. Ao seu modo, sem meias palavras, diz: Acho que a viagem é a mais empobrecedora, direi mesmo a mais burra das experiências humanas.
Às vezes alcanço Nelson e consigo enxergá-lo por entre as brumações do mito. Na viagem o sujeito, diz, deixa de existir, porque todo sujeito existe apenas em função do outro. Nos reconhecemos e nos estranhamos no olhar do outro, na alteridade. O homem que nasce e morre na ilha deserta nem homem se torna, portanto. Os náufragos, para não enlouquecerem, criam seus homens: bonecos de pau, coqueiros, rabiscos nas cavernas, bola de vôlei.
Viajar é naufragar-se a si.
Viajar é não existir, nesse sentido rodrigueano. Otto Lara Resende (...) foi à Escandinávia, chegou lá e não foi olhado por ninguém. Se ele desfilasse nu pela Avenida Central de lá, não teria a observação de um guarda, simplesmente porque o guarda não o olharia. O nosso querido Otto na Escandinávia não foi reconhecido por um mísero bacalhau e ele teve então a sensação de que não existia.
Como o leitor, também flerto com a fantasia das terras distantes. Como ao leitor, me fascina a ideia de cruzar oceanos, desbravar culturas, presenciar o outro, experimentar o novo. Mas separado de minha família, filha, amigos, colegas, vizinhos, porteiro, estranhos da rua XV, cães, casa, livros, cama, móveis, contas, trabalhos, pedras, céu paulistano, céu curitibano, calçamento, carro, praça, faculdade, parque, do teatro em que beijei um amor antigo, do banco de praça em que escrevi poemas para uma pequena perdida, da esquina em que cultivei a memória de um encontro, o que sou?
Quando o homem se separa disso, então ele deixa de existir, diz Nelson.
Deixo. Eu o entendo às vezes. A viagem não é solução de problemas - além do tédio. Não é superior método de aprendizado, como se só pudéssemos apreender Paris com uma visita à Cidade Luz. Não adianta nada você passar 48 horas em Paris. É como se você passasse pela Ava Gardner e dissesse, 'Boa noite, minha senhora' e saísse crente que a tivesse possuído. Isto é exato: o sujeito passa por Paris, dá boa noite a Paris, isso não significou nada no sentido de enriquecimento pessoal, isso é zero. Só se você fizesse o que eu fiz de Pernambuco para o Rio, e começasse a morar em Paris.
Vivemos a dizer que o tempo acelera. Pelas ruas estranhas, becos tortos, vielas estreitas, guio-me pelo GPS. Economizo muitos minutos. Mas ainda sou homem, e o tempo do meu aprendizado é o tempo do homem, das coisas do homem, da minha ancestral humanidade. Talvez só entendesse Lisboa depois de 3 meses ou mais na cidade, independentemente do meu GPS. Mas tenho três dias. E pressa. As viagens fast food do mundo hiperrápido, hiperconectado, pouco transformam.
Porém também peço licença para discordar do gênio. Ainda que insuficiente, a experiência é a experiência, e suas marcas não são apagadas como as anotações que fiz no café Costa, no Porto. Não existir é uma aprendizagem em si. Que na rua não me cumprimentem, que eu não reconheça o padrão das pedras no calçamento, que os dez séculos das igrejas medievais zombem do que sou: pó. Nisso tudo há também sentido.
Se no olhar do outro eu me defino, na ausência dele sou infinito. No escuro os poetas veem profundamente. Quando me assola o vazio, volto mais cheio do que parti.
É disso que trata esta viagem. Ainda que breve, ainda que óbvia, ainda que imperfeita, é a viagem possível dentro do tempo possível dentro da vida possível - que é a única, agora.
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