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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Três meses sem facebook

O que muda com a desconexão?

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Agora já faz alguns meses que eu e o Facebook demos um tempo. Fora a página desta coluna no site, não mantenho mais contato com a rede. O que mudou?

Hoje, olhando friamente, vejo como o Facebook facilita tanta coisa boa: o contato entre amigos, parentes, colegas e até estranhos - e a conexão de pessoas com pessoas sempre é poderosa, estimula nossa empatia, enriquece a experiência humana. A rede multiplica nossas leituras e a escrita. Traça um pequeno painel sociológico sobre diversos mundos à nossa volta. Nos informa sobre tudo - às vezes, com fontes primárias, os próprios sujeitos das notícias.

Tudo isso o Facebook faz, e tudo isso é bom. Ou melhor, poderia ser bom, não fosse um problema de escala e outro de propósito.

O problema de escala logo se manifesta, não importa se você tem 50 ou 5.000 conexões. Tudo é excessivo na rede social. A quantidade de contatos, o volume de postagens, a sensação de ter sido tragado por um tsunami a meio caminho da destruição total, não importa em que momento do dia ou da noite. A insaciabilidade da rede, sempre pedindo mais: mais olhos, mais bocas, mais mãos, eventualmente nos exaure.

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O Facebook é uma mãe ressentida que nos exige atenção permanente, sob a ameaça de nos degredar, mas que sempre acaba voltando atrás com promessas sedutoras para que nos reincorporemos ao seio da família (e dos 5.000 "amigos" deixados pra trás).

É tudo demais. Pessoas demais, opiniões demais, certezas demais, tendências, novidades, problemas, polêmicas em excesso. Somos permanentemente instados a ter opinião formada sobre o último programa de TV, a última declaração do político, a última partida de futebol, a guerra, a paz, cinema, bolos, armas de fogo e cachorros: tudo ao mesmo tempo e agora. Para aqueles que, como eu, demoram a chegar a alguma conclusão, e em geral não chegam a nenhuma, é um pesadelo. Pior: depois de manifestada uma opinião, é impossível voltar atrás. Ela circula eternamente em impressões e mentes acusatórias.  É tudo demais.

Mas, fosse apenas de escala o problema, a situação seria mais contornável. Seguir menos gente ou instituições, amigar menos, conectar menos. A questão maior, creio, é o propósito de tudo isso. E o fim do Face é um só: lucrar. Lucrar com nossas informações pessoais, com nossos comentários, com nossos olhos, mãos e bocas, lucrar com o mapeamento de nossos hábitos, com a oferta incessante de publicidade.

A finalidade da rede, logo, se confunde com a finalidade da maioria de seus integrantes. É preciso lucrar. É preciso (se) vender.

Se não é possível vender mercadorias e serviços, vendemos a nós mesmos. Então todos se tornam produtos na lógica da rede global. De repente, sem aviso, sem preparação, todos se postam em prateleiras. Há as mercadorias cult, cheias de opiniões pseudointeligentes sobre os temas da vez. Há as mercadorias hipersaudáveis, com seus hábitos fitness minuciosamente descritos e fotografados. Há as mercadorias divertidas, que se vendem pelo humor. Há as mercadorias eróticas ou sexuais. Descolados, obstinados, humanitários, enfim, há lugar para todos os tipos de mercadoria no supermercado das reputações.

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Há espaço para todos os produtos, mas para nenhuma complexidade. Quando assumimos uma persona - o intelectual, por exemplo - não podemos mais assumir outra. É preciso que um produto se mantenha coerente para que possa ser infinitamente curtível: um pacote de biscoitos é um pacote de biscoitos é um pacote de biscoitos. É confuso apresentar-se intelectual e ignorante, politizado e conciliador, descolado e careta, feliz e infeliz, paciente e impaciente, polido e grosseiro ou com qualquer outra combinação mais complexa e portanto real.

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Agora já faz alguns meses que eu e o Facebook demos um tempo. O que mudou? Nada de fundamental, nada de transcendental. Não há luz fora do Face, mas talvez haja mais tempo e menos escuridão. Estou mais no controle do que leio e do que escrevo, e para quem. Não preciso me justificar por ter desgostado do filme da moda, ou vice-versa. Não preciso me posicionar nem sequer me informar sobre tudo o que acontece nos estreitos mundos conectados.

A vida segue pacata e besta como sempre. Um dia, talvez, eu volte. Mas a nossa relação, como qualquer relação após um rompimento, já estará desencantada. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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