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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|o que temos. o que somos.

A história material avança. Mais bens-mais máquinas-mais conforto. Mas as pessoas estão mais inteligentes, mais cultas, mais tolerantes, mais sábias?

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Foto do author  Renato Essenfelder
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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Nunca tivemos tanto. No entanto, com tanto pelo que zelar - o carro, a casa, os móveis delicados, a pintura, as máquinas, os celulares, relógios, roupas, acessórios, cosméticos - negligenciamos mais e mais o que somos, por debaixo da montanha de escombros polidos.

Nas casas proliferam televisores, refrigeradores, tanquinhos. Máquinas de tudo: lavar, passar, entreter, limpar. Máquinas de passar o tempo. Máquinas de existir.

Nas ruas proliferam vendas, bancas, lojas, barracas, automóveis, guarda-chuvas, telas, cartazes, promoções.

A história material avança. Mais bens-mais máquinas-mais conforto. Mas as pessoas estão mais inteligentes, mais cultas, mais tolerantes, mais sábias, mais responsáveis, mais civilizadas, mais: humanas?

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Conquistado o conforto, continuamos querendo mais. Cegamente, ter mais o que ter. E, quanto mais temos, mais tememos perder.

Tudo o que possuímos nos possui também. Você é prisioneiro dos seus suspensórios e joias, dos seus carros e sapatos.

A criança entediada pede um brinquedo a cada feriado. Depois outro. Mais um. Abandona-os logo num canto qualquer. A alegria é ganhar/possuir. Alguns têm muito, outros, tão pouco. Mas quem tem frequentemente esquece o problema de fundo. Não é que tenha pouco. É que ter é muito pouco. 

Longe e perto, numa esquina ensombrada, um outro nos observa. Não tem forma. No fundo do espelho um ponto de luz diminuto quase não se enxerga. Dentro das nossas cabeças, o mundo interno, imaterial e abstrato, onde se engendram e descartam sonhos e ideias, esperanças e temores, repousa. O lugar onde a cada dia se constrói o sentido da vida segue atrofiado - sem sentido.

Compramos, mas não evoluímos. Parcelamos em doze vezes no cartão, mas nos endividamos sobretudo com nós mesmos. Propositadamente confundem ter e ser. Ser é evoluir: somar e dividir. Mais tolerância, amor, liberdade, solidariedade, empatia. Um estender as mãos para si próprio e para o mundo. Cada homem é a humanidade inteira. Ter, ao contrário, é uma alegria fugaz.

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Conquistadas as condições fundamentais de conforto, a fronteira a cruzar está dentro de nós. Senão passaremos a vida cuidando do que está externo a nós. O carro, a casa, os móveis. É pouco.

É preciso também cultivar o nosso jardim, espírito e ideias.

Ter tudo é insuficiente.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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