PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Só mostre o que estiver disposto a perder

A Copa não está comprada. Nem tudo tem preço neste mundo. Mas tudo tem valor.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:

A esta altura já desapareceram os rumores de que a Copa foi comprada. Logo, contudo, serão substituídos por outros. Eleições, campeonatos, concursos, provas. Afetos. O mundo, afinal, é um imenso supermercado.

É difícil aceitar a ideia de que muitas coisas não têm preço - mas têm valor.

Aprendi desde cedo. Por alguma inexplicável razão, sempre atraí almas perdidas. Em Curitiba, os mendigos atravessavam a rua para me pedir alguma coisa. Olhos fixos em mim, vinham de longe. Farol dos desajustados.

Até hoje é assim.

 Foto: Estadão

arte: loro verz

Publicidade

Eu, menino, contava notas de um real na rua, sem pudores, para me certificar de que poderia comprar quadrinhos. Um mendigo me pediu o dinheiro para comprar comida. Constrangido, espantado, entreguei tudo o que tinha em mãos. Em troca, aprendi:

- Nesta vida, você só mostra aquilo que estiver disposto a perder.

Tudo o que anunciamos está maduro para ser perdido. Às vezes, um carro caro postado no Instagram. Às vezes, um amor.

Pediu-me dinheiro, o andarilho. Menos mau. Quando a demanda é material, a solução é simples. É fácil calcular custo e benefício sobre esmolas. Mas quando a demanda é outra, mais abstrata, constrangemo-nos. E se me pedisse atenção? Um abraço?

É confortável viver achando que tudo tem o seu preço, ainda que, assim, nada tenha muito valor. Não aprendemos a lidar com aquilo que não se compra nem se vende.

Publicidade

Na rua Augusta, em São Paulo, uma prostituta pede um cigarro e uns minutos de atenção. As pessoas passam apressadamente; murmuram atropeladamente que estão sem dinheiro, sem tempo, atrasadas. As pessoas em São Paulo estão sempre atrasadas demais. Acelerando em direção ao destino, perdem a viagem. E o destino qual seria, senão morrer? Morrer discretamente, espetacularmente, inesperadamente: morrer.

- Eu não quero o seu dinheiro -, ela repetia. Eu quero que você me escute.

Mas o que ela teria a dizer, e quem estaria disposto a parar e ouvir? Melhor se esmolasse, simplesmente. Se dissesse me dê um real para comprar cachaça.

Mas o mundo é mais complicado do que isso, e, ao contrário do que me disseram, o dinheiro não é seu motor universal.

Todos têm uma história para contar. Mas quantos de nós estamos dispostos a ouvir? Adoramos as redes sociais, onde podemos falar, falar, falar sem intervalos nem interrupções. Sobre tudo. Sobre nada. Há muito de monólogo e pouco de diálogo no grande aquário virtual. Prostitutas pedindo um minuto de atenção para as nossas irrelevâncias fundamentais. Nossas bobagens constituintes.

Publicidade

Seria mais fácil entregar um real. Quem disse, contudo, que viver é descomplicado?

O gorjeio o dinheiro não compra. Nem o amor do passarinho. As coisas que se bastam olham para o céu.

______________________________________________

*Siga Males Crônicos no Facebook.

(Não esqueça de clicar em "obter notificações" na página)

Publicidade

Atualizações todas as segundas-feiras.

Twitter do autor: http://twitter.com/essenfelder

______________________________________________

 

 

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.