PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Série da HBO supera "13 Reasons" com olhar maduro para o bullying e a violência

Em "Big Little Lies" todas parecem ser vítimas e vilãs ao mesmo tempo, conforme a perspectiva – como tantas vezes ocorre na vida.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

PUBLICIDADE

»Enquanto "13 Reasons Why" monopolizava o buzz de melhor série de todos os tempos da última semana, outra, mais sutil, navegava por mares similares, porém sob uma perspectiva madura, adulta. Falo de "Big Little Lies", a produção da HBO de apenas sete episódios, encabeçada por Nicole Kidman e Reese Whiterspoon, que também trata de bullying escolar e de violências visíveis e invisíveis contra a mulher, mas com outro olhar, muito mais complexo.

 

Se na primeira a adolescente parece ser vítima de tudo - dos colegas e amigos, dos paqueras e parentes - até tomar a terrível decisão de tirar a própria vida, na segunda, as protagonistas, mulheres adultas, sofrem igualmente, mas recusam o papel de vítimas.

Não há propriamente "culpados" na série da HBO, não há "razões" que tentem explicar o inexplicável, e é isso que a torna mais interessante. A esposa sofre violência doméstica de um marido que é o demônio, mas também é pai amoroso e amante apaixonado. Ela sofre, mas fica ao seu lado, ao menos enquanto consegue, e tem até certo orgulho da vida sexual quentíssima com aquele homem terrível. As amigas invejam.

Outra protagonista trai o companheiro, que encarna o estereótipo do maridinho perfeito, carinhoso e apaixonado, muito embora ame ele e a família. Por que o faz? Não sabe dizer. Em certo momento, a personagem de Whiterspoon diz, apenas: fui egoísta. Mas não é boa resposta, é apenas uma boa penitência. Não é o egoísmo que nos leva a trair, embora ele possibilite a traição. Então o que é? O que leva alguém a manter um longo caso às escondidas? A dona de casa não sabe, assim como nós também não sabemos.

Publicidade

Entendo que muita gente prefira "13 Reasons" a "Big Little Lies". A primeira oferece um pacote mais ou menos coeso para dar conta do inexplicável: o que leva alguém a tirar a própria vida? A segunda, enervante, não oferece explicação nenhuma. As vidas daquelas mulheres se cruzam e descruzam, as amigas viram inimigas, as inimigas viram amigas, os honestos traem, os desonestos estendem a mão. Talvez por isso nenhuma delas vista a carapuça da vítima. Todas ali sabem, sem dúvida, que são ao mesmo tempo vítimas e algozes. Mocinhas e vilãs.

As coisas são assim, na vida. Contraditórias. Sem explicação. Um tecido de pequenas grandes mentiras - ou grandes pequenas mentiras - simplesmente inexplicáveis. E isso é a vida. É muito maior do que a linguagem; portanto, inexprimível. Negar esse tipo de coisa é negar a realidade e se refugiar num Olimpo tedioso de absoluta coerência, onde todos cumprem os papéis esperados.

E como é chocante constatar que, embora a série da Netflix aborde um tema muito trágico, o suicídio, o verdadeiro drama humano aparece é na série das senhoras de meia idade da HBO, onde a vida se mostra em toda a sua natureza caótica: pouco se lixando para nossas inúteis tentativas de busca de sentido.

Para lembrar meu provável escritor favorito, a verdade é que a vida não espera de nós tranquilidade, paz, felicidade, alegria, sucesso, likes, comments, shares...

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.«

Publicidade

______________________________________________

Chegou até aqui? Aproveite e siga Males Crônicos no Facebook.

(ah, não esqueça de clicar em "obter notificações", lá na página)

Atualizações todas as segundas-feiras.

E me segue no Twitter: http://twitter.com/essenfelder

Publicidade

______________________________________________

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.