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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Relacionamento é a coisa mais simples do mundo

Ao menos até que a gente estrague

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Relacionamentos não são complicados. É, na verdade, a coisa mais simples que existe.

Funciona assim: um homem adulto de livre e espontânea vontade estabelece um vínculo com uma mulher adulta de livre e espontânea vontade (exemplifico com a forma mais trivial, mas você pode mudar de gênero e número conforme deseje). Então ele está com ela porque gosta da maneira como se sente ao lado dela; ela, por sua vez, fica com ele pela mesma razão, porque gosta disso. Pode ser que goste dele ou pode ser que goste de si própria quando está com ele - também é válido, então pouco importa. O importante é que esse vínculo, ele+ela, aumente a potência de ambos, ou seja, a vontade de viver, a energia, a disposição. O tesão.

Então veja, o relacionamento é uma coisa muito simples. O homem segue sendo o homem, com suas idiossincrasias, manias e defeitos, e a mulher segue sendo mulher, do jeitinho que sempre foi. Ambos estão juntos porque querem, enquanto querem. Ambos têm total liberdade para desfazer esse vínculo quando quiserem ou então de proporem, a qualquer tempo, uma mudança de contrato: vamos de amizade? vamos de poliamor? vamos de família margarina? vamos alinhar interesses? vamos cada um pro seu canto? O outro, nesse momento, topa ou não topa. (Exceto, é claro, quando há um rompimento unilateral. Se um decide se afastar, o outro não pode nem deve fazer nada a respeito. Mas falo hoje de relacionamentos, e não de rompimentos.)

Até parece conversa de "relacionamento líquido", de "desapego pós-moderno", mas não se trata disso. Trata-se apenas de civilidade. Relacionamentos civilizados são muito simples.

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Claro que o vínculo pressupõe alguns entendimentos. Para alguns casais, fidelidade importa (e é preciso definir o que significa fidelidade). Para outros, não. Alguns casais querem filhos; outros, não. Alguns pedem mais privacidade; outros, menos.Alguns estão nessa pela grana, alguns pela beleza, alguns pela fama... O importante é o acordo em comum, o encontro de expectativas e interesses. Mudaram? Desencontraram? É hora de uma mudança de contrato.

Relacionamentos são muito simples, insisto.

Mas as pessoas, não.

As pessoas são muito complicadas - e é aí que todos os relacionamentos azedam. As pessoas são complicadas porque dizem aceitar o que não aceitam e dizem querer o que não querem (até porque não sabem o que querem). As pessoas mudam de ideia constantemente. Mudam de vontade. Alimentam expectativas em segredo. Cansam, enjoam, entediam.

Pior: alguns têm incapacidade crônica de se posicionarem e de defenderem aquilo em que acreditam. É a turma do eterno "tudo bem". Outros, ao contrário, são incapazes de contemporizar, de buscar um meio termo. "Meu jeito é o único jeito."

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As pessoas são, de fato, imensamente complicadas. Não apenas "as mulheres", como se diz, mas todas as pessoas são assim. Eu, por exemplo, sou muito complicado. Uma metamorfose ambulante. Tenho claríssima na minha cabeça a cartilha dos relacionamentos simples, e tento aplicá-la. Mas acabo complicando tudo, porque sou muito complicado.

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As pessoas são difíceis porque nada as satisfaz, na realidade. Só na imaginação. Sempre querem mais e querem melhor. Ótimo. Mas, em se tratando de relacionamentos, nem sempre dá pra ser mais e melhor.

Por isso os relacionamentos perfeitos estão ou no reino da imaginação - na arte, nos mitos, na publicidade - ou então não envolvem apenas seres humanos. Relacionamento perfeito pode ter uma garota e seu gato, um cara e seu cachorro; dois hamsters. Mãe e filha vivem discutindo. Irmãos brigam, não importa se é família ou não. Somos um bicho complicado.

Relacionamentos são simples, em suma, até que a gente complique tudo com a nossa bendita humanidade.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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