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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Qual foi a última vez em que você se orgulhou de algo?

Soterrada na rotina, no trânsito e no escritório, nos sofás e travesseiros, embalada em banhos mornos e sonhos que sonharam para nós, a vida dos confortos monótonos não orgulha ninguém. Nem deveria.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Na saída da escola, vejo o menino impossivelmente contente. Certas alegrias, assim tão puras que machucam os olhos cansados, só parecem possíveis antes dos 15 anos de idade. Seu peito infla e o os lábios se esticam num sorriso incontido: pai, tirei dez na prova. Os dois compartilham de um orgulho luminoso, e naquele segundo todas as coisas parecem estar encaixadas nos devidos lugares. Por um instante o presente se paga e o futuro é glorioso. É uma cena bonita.

É uma cena das mais bonitas, que rareia. O orgulho, o orgulhar-se de si próprio assim, escasseia com os anos. Na idade adulta se esconde, perseguido por milênios de tradições religiosas, etiquetas sociais e hipocrisia. Definha. Vira uma fagulha bem miúda e bem efêmera, que não convém apontar, que mal convém sentir. Sentir orgulho, aquele orgulho explosivo da meninice, um brio de não caber em si, pega mal.

Pega mal? O orgulho dos adultos é um exagero, um ufanismo, uma chatice. Batemos palmas apenas aos homens humildes e suas virtudes. Sim, sua simplicidade é fonte de beleza, como o campo, a árvore, o lago. Sim.

Mas isso não é motivo para condenarmos, talvez por inveja, os que se orgulham de seus atos e conquistas.

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A beleza dos orgulhosos é como a águia e os leões, todos os bichos selvagens, e mais a maré revolta, e além de tudo, a tempestade. Todas as fúrias do mundo, que caminham altivamente, são belas à sua maneira. Sua beleza pode humilhar os humilhados, diminuir os diminuídos, cegar os cegos: revoltá-los. Quanta arrogância, dizem, nesta tempestade. Todos os dias deveriam ser de mormaço. Mas não se renda.

Pois a ditadura dos idiotas faz triunfar não a humildade bela, mas uma aparência de humildade. Um aspecto simplório fraudulento, tão planejado e retocado quanto qualquer imagem de rede social. Fiquemos com a tempestade.

Na porta da escola eu vejo o menino e me emociono. Os meninos podem ser orgulhosos, bem como seus pais, ainda que a eles se peça mais discrição. E nós? Qual foi a última vez em que você sentiu orgulho de si mesmo, em que seu brio ofuscou toda a cautela, toda a humildade, toda a modéstia exigida de um adulto responsável vivendo em um mundo miserável? Quando mandou às favas todos os controles e impressões alheias e, cheio de si, entrou para a história?

Soterrada na rotina, no trânsito e no escritório, nos sofás e travesseiros, embalada em banhos mornos e sonhos que sonharam para nós, a vida dos confortos monótonos não orgulha ninguém. Nem deveria. Cada dia vencido é uma vitória. Sua grande conquista então será atravessar mais um dia, vivo?

Esqueça isso.

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Talvez a chave esteja na sua meninice. Do que você realmente se orgulhava? Lembre. Faça. Tente outra vez. Mas seja rápido, aja antes que o dia termine e você se contente mais uma vez por ter chegado são e salvo à sua garagem, à sua casa, ao seu sofá.«

 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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