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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Por um veneno antimonotonia

As conversas, as risadas, os cochichos muito top falarão da festa muito top o fim de semana muito top – ou uma furada.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

»O mundo anda muito previsível. Ou sou eu? Ou é você?

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Reparou?

Os jornais dão a mesma notícia todos os dias; mudam os nomes, mudam as locações, mas o enredo se repete.

Segue. Os caminhos são sempre os mesmos: casa, escola, trabalho, desvie da avenida Rebouças pelo amor de Deus, cuidado com o buraco na pista, no semáforo demorado aproveite para encontrar a faixa 13 no pen drive. Cante alto, ria alto, suspire alto. Uns caras desde as seis da manhã estão correndo na Paulista, os motoristas olham entre o espanto e a inveja, um morador de rua pede ração para o cachorro, um casal se despede sem mesuras de paixão, uma ambulância corta o tráfego, o jornaleiro se estica para abrir a banca, os garis solitários e invisíveis empurram a sujeira lentamente pelo meio-fio, equilibrando-se entre rua e calçada, de modo tão monótono e sincronizado que se fundem à própria paisagem.

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A certa altura, tudo é paisagem. Até eu sou paisagem. Até você.

Na chegada ao trabalho o estacionamento estará já quase lotado. O manobrista vai sorrir sem jeito e falar de futebol. Metade dos elevadores estará parada, a fila da cantina será grande, os passantes cumprimentarão sem dar atenção, o ascensorista perguntará o andar mesmo sabendo onde cada criatura irá descer. As conversas, as risadas, os cochichos muito top falarão da festa muito top o fim de semana muito top ou uma furada a ressaca cara a mina putz não acredito então isso aquilo conversa fiada: os discursos sobre o tempo, sobre o campeonato, sobre o país afundado. Clichês.

Quando der a hora marcada, tomar o mesmo caminho de volta para casa, cruzar os mesmos mendigos, os mesmos carros, a mesma ambulância apressada.

No rádio, o jornalista comentará as notícias de hoje - ou de ontem ou de anteontem ou de amanhã, quem saberia dizer?

Chegar cansado, tomar banho, comer, dormir.

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Às vezes, sonhar. Nos sonhos, reviver o dia. A impressão difusa de que em algum ponto do dia, não sabemos dizer se no início da manhã ou se no fim da noite, se no espaço de um ou de dois passos na calçada, talvez tenhamos trombado com uma ave rara. Que permanece rara, porque ninguém a toca. Uma ave deslocada e rara que, se não valesse a vida, ao menos o dia valeria.

E quem precisa de mais do que um dia?«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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