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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Por que eu queria que o Lolla fosse um fracasso

Mas não me importei muito com o desempenho do Justin Bieber.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 

arte: loro verz

 

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»Todos têm seu lado mesquinho. Não é bonito, mas aflora. Às vezes é uma raivinha no Dia dos Namorados, quando todas as mídias parecem contaminadas por um tipo de felicidade que pouca gente, no mundo real, conhece. Às vezes é diante da promoção do seu colega de trabalho, que, você jura, não a merece. E aquele salário todo! Às vezes a bile brota diante de uma foto de Instagram: um oceano tão azul que se confunde com o horizonte.

Nessas horas a gente tenta se conter. Contorce a cara, trava os músculos da boca, franze o cenho, tudo para que não escape um comentário, de verbo ou de mímica, sobre o filho da mãe que tem o que você queria ter, vive o que você queria viver, e, não bastasse a experiência em si, amplifica a felicidade por milhões de curtidas nas redes sociais. A inveja é feia, mas os dedos dos pés também não são nenhuma obra de arte. No entanto, estão lá: dedões meio tortos e invejas tremendas.

Pensava nisso ao sintonizar a transmissão, pelo rádio, do último Lollapalooza. Fui apenas uma vez ao festival, com um amigo meio sumido (ora por quê?) e me diverti muito, oscilando de palco em palco, fugindo de filas, buscando abrigo do sol, tropeçando nas sombras e avançando até bem perto dos caras do New Order, que mandavam ver em músicas que me diziam tanto, que me influenciaram a escrever, ainda dos tempos de Joy Division. Tudo uma aventura: ir até o autódromo, longe de casa, voltar de lá, baldeando de trem em trem, estação em estação, ônibus em ônibus, úmido de suor e felicidade indizível. Felicidade que se pode apenas cantarolar, roucamente - em palavras, não cabe.

Agora, no carro, voltando das compras de casa, no domingo, minha namorada quer ouvir The Weeknd. Eu quero ouvir Strokes. Antes do início do show da banda americana, começamos, sem perceber, a praguejar.

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- O Julian Casablancas canta muito mal, ao vivo é uma droga.

- Está muito fora de forma.Deve estar sem fôlego nenhum.

- Pagar o que, 500 paus pra ver isso?

- Além do mais, vai chover pra cacete.

- Chuva e fila. Imagina duas horas esperando um dogão de 20 reais enquanto até a alma encharca.

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- Dizem que o Uber tá cobrando mais de cem reais pra sair de Interlagos.

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Praguejamos, ansiosos pelo desastre do show a que não pudemos ir. A inveja é uma droga. Minutos depois, o locutor da rádio faz suspense: o show está dez minutos atrasado, coisa rara em um festival tão cronometrado, e o Strokes não tem fama de ser exatamente confiável. Parece que o Julian se irritou com algo. Será que vai ter show? Será que não vai ter show?

É inevitável: a alma, apequenada pelas horas em carro e loja de departamentos, anseia a pequena tragédia. Espero que cancelem. Quem sabe oferecem outro dia e a gente vai. Parece que tem microfonia, muita microfonia, barulho, ruído. O som nesses festivais é uma bela porcaria.

Mas é claro que o show aconteceu. Dizem até que foi bom. Quem foi, gostou. Não perguntei maiores informações: bastou ouvir umas três canções no rádio para admitir que queríamos estar lá.

Não é que queríamos que ninguém estivesse nem que a banda desaparecesse. É que queríamos estar lá também. A fronteira do desejo e do desprezo é sempre tão tênue: a fronteira do querer bem a si e do querer mal a outrem assim, gratuitamente.

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Passadas duas semanas do show, é mais fácil engolir. Ontem teve Justin Bieber aqui do lado de casa. Esse não cobicei: ganhasse um ingresso, devolvia. Mas é um exercício constante: não invejar o que cobiça e não invejar o que não cobiça. Querer ser feliz, assim, em paz, sem precisar secar as conquistas dos outros para se sentir melhor. Aplicar a mesma lei a Strokes e Justin: bom proveito a todos

A vida, afinal, é feita disso. Buscar a fonte da própria alegria. Focar nisso: a fonte única, pessoal e intransferível, da felicidade só nossa - sem importar o que dizem os críticos, os falsos amigos, a multidão de desconhecidos.

Suportar os dias chuvosos, tristes, e alongar os gozos mais verdadeiros.

Todo o resto é microfonia.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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