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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Cada azulejo tem a sua poesia

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Foto do author  Renato Essenfelder
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arte: loro verz

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Não sou muito bom em trabalhos manuais. Desde pequeno, recortar uma folha de papel em linha reta é um desafio. Não consigo nem sequer desenhar um círculo, pinto para fora do quadro, enrolo brigadeiros em formas que desafiam a geometria.

Ando redecorando a casa, cansado dos móveis herdados de outras vidas, encharcados de histórias que não são as minhas. Pendurei seis porta-retratos na parede há uns dias e todos caíram depois de horas. Todos eles. Metade quebrou, metade eu salvei com supercola. Colei, obviamente, sem saber alinhar arestas. Minha cabeça pensa incessantemente em todas as coisas: imagina, planeja, diagrama. As mãos, no entanto, me traem. Tremem.

Sou um terror em trabalhos manuais.

No fim de semana, depois de meses com um novo varal e novas persianas encostados na parede, rendi-me à minha incompetência e chamei um marido de aluguel. É o nome de um serviço de "especialistas em pequenos reparos". É também o nome do meu fracasso. Preciso de um marido de aluguel para pendurar as persianas (trocar lâmpadas ainda sei.) Expliquei, constrangido, o serviço ao meu marido provisório. Instalar o varal. Você tem furadeira?, ele perguntou. Eu não tenho. Nem saberia usar. A convenção de Genebra me proíbe de ter furadeiras, serras e até canivetes em casa - brinquei, mas ele deu de ombros. 

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Já no fim do serviço, pergunta-me: o que o senhor faz? Arrisquei, para ver a sua reação: eu sou poeta. Eu sou poeta e não sei fazer nada disso direito. Na minha casa antiga, quando ainda nutria orgulhos manuais, instalei a torneira da cozinha. Vazou por semanas, até que, rendido, chamei um encanador. Foi a mesma coisa com tomadas, chuveiros, azulejos: tudo sempre meio torto, meio capenga. Até fixar um prego na parede é um desafio.

O prego entorta, o quadro entorta, eu entorto.

Sofri anos por isso, mas hoje aceito. Eu escrevo. Quando mais novo, escrevia cartas de amor sob encomenda. Os amigos tentavam descrever o que sentiam, relatavam pequenos eventos, memórias, percepções, e eu colocava tudo aquilo no papel e do papel para as mãos da mulher amada. Batata.

Fiz meus bicos de cupido, mas nunca acertei um prego. Porém a gente amadurece, e recentemente lancei-me em um novo desafio. Pintei as paredes de casa. Não ficaram perfeitas, mas estão apresentáveis, o que já é um avanço para mim. Eu não sei como seriam os poemas do meu marido de aluguel, mas suponho que também teriam pés quebrados. Então tudo bem, consola-me. Ninguém é perfeito.

Mas o que é melhor: escrever poemas ou pintar paredes? Vou na contramão da alta filosofia. Toda a filosofia do mundo, às vezes, afoga-se num copo d'água. Todos os dias sento no sofá e admiro a minha parede. Admiro também a mesa que montei e encostei contra aquela mesma parede. Está sólida, limpa, retilínea.

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Vou na contramão da filosofia porque todos os grandes pensadores decretaram a supremacia dos prazeres intelectuais sobre os prazeres físicos ou materiais. Stuart Mill disse que era preferível ser um homem insatisfeito do que um porco satisfeito, e que também seria preferível ser Sócrates insatisfeito do que um imbecil satisfeito. Aristóteles diz ao seu filho, Nicômaco, que quem persegue o prazer físico vive como um ser inferior. Um ruminante: vaca movida por gozo e dor.

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Mas eu, que não sou grande, que não sou pensador - prefiro poeta, porque poeta pode ser um estado de espírito que prescinda de tudo, até de poemas - não sei se os prazeres intelectuais de toda uma vida superam esta parede tão bem pintada (para os meus padrões, é claro). Esta parede que todos os dias vejo e toco, aliso e cheiro. A mesa em que faço minhas refeições, em que escrevo este texto - a mesa que sobreviverá às reflexões e aos textos que deixo aqui compilados.

O corpo delgado sobre a cama, que treme ao toque, ou uma eureca e quatrocentas páginas de filosofia?

Mas quero tudo, ah, todas as coisas. Melhor seria se fôssemos um só: o marido de aluguel, especialista em reparos físicos, e eu, especialista em suspiros e inutensílios poéticos. Mas não somos: o ser humano sempre é faltante, e a mim me faltam tantas coisas que há dias em que não sei por onde começar a arquitetura do meu eu. Se começo por Drummond ou se me dedico à marcenaria.

Mas então vejo a parede, a tinta lisa e uniforme. Um dia inteiro de suor e tendinites. A parede, que escora a minha filosofia. O senhor me mostra um poema?, pergunta enfim o pedreiro, limpando o suor da testa.

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Eu lhe estendo um poema.

Ele, exausto, suspira.

Cada azulejo tem a sua poesia. 

 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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