arte: loro verz
» A festa de Ano Novo pertence às crianças, apesar do adiantado da hora. Nós, os adultos, somos intrusos. Olhamos à frente na expectativa de grandes transformações, como a lagarta que adormece no casulo ainda úmido. Recalibramos promessas e desejos, pois o tempo parece então palpável, criatura que se pega nas mãos. Se soubermos bajulá-la, dará tudo, ronronando. Durante a contagem regressiva dos dez segundos, a visita cruel do tempo parece até amistosa. Uma trégua. O bicho recolhe suas garras. Os adultos usam roupas novas e chapéus de festa e assopram línguas de sogra, disfarçando a idade, na expectativa de que o tempo não os desmascare.
As crianças, no entanto, estão simplesmente lá, sem pompa. Curtindo, dormindo, jogando, vendo TV sem pretensões nem expectativas. Reclamando da comida e querendo explodir os fogos. Com o tempo ao seu lado, não precisam tentar domesticá-lo.
Os pequenos e seus porquês sem resposta desconcertam: por que o Ano Novo é hoje e não em outro tempo? Por que medir o tempo assim e não assado? Por que, da noite para o dia, tudo seria diferente? O que é que tem de mais no Réveillon? São boas perguntas, digo, mas não vão livrar ninguém da faxina. A faxina é a melhor prática da filosofia.
Ainda que não entendam completamente os rituais de Réveillon, as crianças são, por excelência, donas da festa. Pois o Ano Novo é o gozo do futuro melhor, a conversão às esperanças, a renovação.
Mas tudo que para elas é natural, para nós é empenho. Um esforço até de cardápio: romãs, lentilhas, uvas, nozes. Comer só a carne de bichos que andam e miram a frente, minha mãe ensinou. Nada de frango ou peru, que ciscam para trás. Até nas postas sobre a mesa estão postas promessas e esperanças.
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Os rituais mais lúdicos nos aproximam da verdadeira essência da festa: brincar com o tempo, esquecer que nosso estoque de passado cresce à medida que o futuro se esgota, naturalmente. Pular ondinhas, enterrar moedas no arroz cru, guardar sementes de romã na carteira, escolher as roupas íntimas pela cor. Até nisso o Ano Novo tem algo de divertimento infantil. Algo, também, da crença ingênua, pueril, dos nossos primeiros anos: atirar flores ao mar, pisar na água com o pé direito à frente, dar pulinhos.
Por isso, não convém ser sério demais no dia 31. Convém, ao contrário, despertar a criança que ainda existe. Deixá-la mandar. Rir, brindar, festejar. Amar puramente. Ceder, doar. E, para quem estiver cansado, apenas dormir, feliz.
A essência do Ano Novo talvez seja exatamente esta: voltar a ser criança. Ter, por um dia, o futuro inesgotável à frente, como se fôssemos infinitos,
e como se cada Ano Novo reafirmasse isso. «
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