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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|O que é mais importante: dinheiro ou coragem?

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Responda rápido: o que é mais importante, dinheiro ou coragem?

Respondeu? Agora, pensemos. Vamos por partes.

A questão me assombrou enquanto fazia a barba. O rádio anunciava que o  vencedor do último sorteio da Mega Sena levaria para casa mais de 100 milhões de reais. Sob qualquer parâmetro, uma montanha de dinheiro. Cem milhões. Um número de calar a boca. Some tudo o que você tem, converta em reais, coloque o resultado diante dessa montanha. Provavelmente, é nada, nem fagulha, à sombra da dinheirama.

Quase me corto. Concentração. Eu sou o cara da piada, o cara que pede a Deus, todos os dias, insistentemente, para ganhar na Mega Sena. Até que Deus, irritado, responde: compre um bilhete! Não compro.

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Não compro, sei que a chance de ganhar é uma em cinquenta milhões, sei que é mais provável eu descobrir que tenho uma herança gigantesca a receber, de um parente de uma galáxia muito, muito distante, do que ganhar na Mega - jogando ou não.

Entretanto, sonho. Diante do espelho, à sombra das nuvens de espuma, os olhos brilham pensando em como eu poderia gastar esse dinheiro. Me dedico seriamente à questão. Como gastar cem milhões de reais (e uns trocados)? Um apartamento, imagino, consumiria um milhão. Outro pra mãe, outros pros irmãos... foram quatro.

Carros para todos? Foram cinco. Viajar o mundo, largar o emprego, torrar em restaurantes e bares? Deve ter ido, no máximo, mais uns três.

Saldo final: restam 92 milhões de reais em conta. Talvez eu não seja muito bom em gastar dinheiro, afinal. Sou o tipo irritante que, às vésperas do aniversário, responde que quer ganhar: nada. Não quer nada. Como, nada? Ah, então me dá uma caneta, uma carteira, um uísque, uma panela. Essas coisas sem graça para as quais, contudo, vejo alguma utilidade.

Quer dizer que a vida é feita de coisas úteis? Claro que não, ao contrário. Mas as melhores coisas, as inúteis, costumam ser de graça. De aniversário me dê sossego, me dê plenitude, me dê felicidade, me dê água na sede e comida na fome, calor no frio e frio no calor, uma brisa na praia... Me dê a sensação de que estou vivendo a minha vida tal qual deveria, por favor. Da melhor maneira possível.

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Impossível. Então, no fim, não me dão nada. Estou perfeitamente bem com isso. Presente mesmo é estar presente, e vivo, e pleno.

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Então volto à pergunta do título. O que é mais importante, dinheiro ou coragem? Lembrei de um amigo, de anos atrás, que se demitiu do jornal para fazer um mochilão pela Ásia. Passou um ano no continente. Depois, voltou ao Brasil, voltou ao jornal, trabalhou mais um ano e parou de novo: desta vez, a Europa.

Conheci outro maluco que largou tudo para morar numa dessas comunidades autosustentáveis, plantando e colhendo.

Conheci gente no extremo oposto. Gente de muito dinheiro e pouca coragem. Um amigo que vive para trabalhar, e se preocupa o tempo inteiro com os juros, o câmbio, a solidez de suas aplicações. Sua mulher só anda de blindado. Ganham muito bem.

Eu não sei você, mas, se eu pudesse escolher, escolheria a coragem. Coragem é melhor do que dinheiro. Apostaria todas as minhas fichas numa loteria em que se acumulasse arrojo, desapego e ousadia. A loteria da coragem.

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Com coragem eu viveria por mim, pelas minhas crenças e virtudes. Com muito dinheiro, viveria a vida da propaganda da Ferrari, do folheto do cruzeiro de luxo, das mulheres bonitas de Hollywood. Tudo muito bom, eu sei, mas... Se pudesse, eu apostaria na coragem, viveria a minha própria vida, então.

A má notícia, você dirá, é que não existe loteria em que se acumule coragem...

Pois acho isso ótimo! As chances, assim, não são de um para cinquenta milhões. Você nem precisa apostar, na verdade. Só precisa: ser.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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