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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|O momento é de crise

O momento é de crise. O homem passa horas diante do computador, vagando aleatoriamente por sites noticiosos, redes sociais, enciclopédias, blogs políticos obscuros, vídeos humorísticos e pornografia.

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Foto do author  Renato Essenfelder
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  Foto: Estadão

 arte: loro verz

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» O momento é de crise. O homem passa horas diante do computador, vagando aleatoriamente por sites noticiosos, redes sociais, enciclopédias, blogs políticos obscuros, vídeos humorísticos e pornografia. Não necessariamente nessa ordem. Está preocupado. O momento é, sem dúvida alguma, de crise. Por isso é preciso tomar uma atitude. Tomará.

Ou não tomará. Percebe os colegas se mobilizando e se angustia. Sabe que alguém em algum lugar está fazendo algo, mas não ele. Alguém em algum lugar está fazendo exatamente aquilo que ele planejava, e talvez melhor. Por um lado isso o alivia de outras pressões e responsabilidades. Por outro, deprime. Pessoalmente, claro que sabe que também tem muito a fazer, mas não consegue iniciar nada agora. O momento é de crise.

O homem levanta da cadeira para romper o imobilismo, tentando ativar todas as sinapses adormecidas. Toma um banho frio, abre a geladeira, fecha a geladeira, alonga os braços, pernas, costas, pescoço. Senta novamente diante do computador com a sensação de que agora, sim. Sorri.

Mas passa os olhos rapidamente pelas mobilizações virtuais: as críticas que viram xingamentos que viram ameaças de morte. Não necessariamente nessa ordem. De tudo, aliás, só tem certeza disto: alguma coisa está fora da ordem. (Mas não sabe exatamente o quê.) Continua, de modo geral, com a mesma vida. Mudou a marca da cerveja, sai menos com os amigos, reduziu o consumo de carne, cancelou a viagem ao exterior, leu aquela novela de Tchékhov. Tudo aparentemente normal. No entanto, sabe o que o ronda. Os morcegos da depressão preparam a revoada.

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Algo fora da ordem, mas o quê? Por toda a parte as pessoas falam em grandes mudanças, os arautos do apocalipse afiam as trombetas. Olha os cadarços desamarrados - o mesmo tênis há 3 anos, todos os dias - e divaga. Teve de dispensar a faxineira, estava ficando proibitivamente caro. No fundo, não achou ruim. Agora, ao menos, havia louça para lavar. Podia fazer alguma coisa realmente útil, algo que o distraísse da crise. Encontrou um prazer diabólico na faxina. Um modo sublime de procrastinar, pensou. Um modo de viver sem crise.

O momento é de crise. O escritor vaga pela sala, senta-se diante do computador, bebe, levanta, lava o copo, senta, ri com um vídeo tolo. Não consegue escrever. Pula de site em site, ignorando a ameaça da tela vazia de ideias.

Em algum lugar, tem certeza de que outro escritor - mais jovem, mais motivado - está escrevendo o seu livro. O meu livro, pensa, minha ideia de tantos anos. A história de minha vida nas mãos de outra pessoa. Nem assim, contudo, sai de si. A correspondência obscurece o vão da porta, narrando toda a história de sua vida nos últimos meses. Contas atrasadas, multas.

Excesso de velocidade para chegar a este lugar. Chegou. E agora? «

 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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