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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|o amor começa

O amor começa. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua cheia, depois de teatro e silêncio.

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Atualização:
arte: loro verz Foto: Estadão

 

O amor começa. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua cheia, depois de teatro e silêncio; começa em parques ensolarados, com a aproximação de dois cachorros curiosos, e seus donos, constrangidos, enlaçando as correias até que os corpos se aproximem e a faces ruborizem; começa com acidentes de automóvel, com a lataria arranhada, e a indignação dos motoristas que lentamente vai cedendo ao constrangimento e à solidariedade; e começa o amor em tardes de tédio, em que nos penduramos ao telefone para jogar conversa fora; o amor começa sem aviso, e às vezes lentamente vemos que se aproxima, como uma aranha caprichosa, subindo por nossos pés e pernas sem sinal de afetação até que resolva nos picar; o amor começa entre amigos que se conhecem há treze anos, e começa entre completos estranhos durante a multidão; às vezes com um esbarrão o amor começa; numa mancha de sorvete no queixo dela o amor começou; num trejeito, numa bebedeira; começa às vezes com violência, num encontro explosivo, em que se golpeiam os amantes até cederem a outros caprichos; o amor despista, finge que não é com ele, olha para o outro lado, espera que adormeçam e então começa; e começa no enlace de mãos no cinema, como videiras sedentas, enraizando-se umas às outras até que do seu fruto se faça o vinho; e nas bocas trêmulas o amor começa, e nas línguas delirantes; e nas noites do campo, quando só as estrelas brilham e o frio é glacial; quando ela pede para acender a lareira, e o fogo crepita, e se faz silêncio, e no silêncio ele percebe; o amor começa na praia, quando meio bêbados entram na água; em 30 segundos de coragem o amor começa; num encontro inesperado, na buzina do carro ao lado, ainda que ninguém o espere ele vem, e começa; durante as refeições e no intervalo delas, na pausa para o cafezinho durante uma risada o amor começa; num instante fora do tempo, que se perpetua; no encontro de olhos, num balcão de bar ou num banco de carro; numa expectativa; em palavras o amor começa, desarticulando sujeito e objeto; numa janela de chat, numa tela iluminada, numa conexão que cai e se restabelece; sem palavras também, no olhar atônito do menino à professora; o amor começa num segundo de admiração, quando ele pela primeira vez bateu palmas para ela, e marejou; e quando ela notou uma falha na barba, e riu; e começa nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; no olhar de um Cristo crucificado, cheio de compaixão o amor começa; na epifania de anos de cumplicidade amiga; na gravidez; em apartamentos vazios, em visitas inesperadas; em jardins coloridos o amor começa; e em despensas vazias, e em copos de açúcar; no constrangimento do elevador o amor começa; num olhar sem pálpebras, que se prolonga durante toda a aula; na descoberta de um seio; no buraco da fechadura; com uma proibição o amor começa; num livro, num filme, numa canção, numa paixão compartilhada; na escansão do nome dela; em duas ou três sílabas arrastadas; ao vê-la acompanhada; ao vê-lo acompanhado o amor também enfim começa; no coração que dilata e tudo abarca; em Brasília o amor começa numa repartição ao pôr do sol; no Rio, numa pausa de botequim; em Belo Horizonte, num sarau bem degustado; em São Paulo, nas filas de gentes, automóveis e animais o amor, reprimido, também começa; uma carta perfumada e o amor começa; de manhã, de tarde, de noite; em dia útil; em dia inútil; plantão; férias; feriados; no desarme da primavera; à sombra do verão; no despetalar do outono; no aconchego do inverno; em todos os lugares o amor começa; a qualquer hora o amor começa; por qualquer motivo o amor começa; para terminar em todos os lugares e a qualquer minuto; para morrer e se tornar eterno, o amor começa.

 

*Leia a crônica de Paulo Mendes Campos: o amor acaba.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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