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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|No princípio era o Verbo comprar

Natal é tempo de alegria. E promoções.

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Foto do author  Renato Essenfelder
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 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

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» A aproximação do Natal sempre provoca sentimentos contraditórios em mim. Observo a alegria das crianças. Nas bem pequenas, o fascínio violento de uma imensurável interrogação. Lenta e persistentemente a cidade começa a receber camadas de plástico verde e vermelho, dourado e prateado. Primeiro, os shoppings e lojas de rua. Depois, sem tardar, as casas, em especial as suas próprias - delas, crianças.

Mas logo também me entristeço com elas. Conservar nos olhos as pupilas infantis, ver o mundo com o assombro de quem o descobre pela primeira vez, é uma metáfora bonita nos livros de auto-ajuda, em que "voltar à primeira vez" é a panaceia que reacende o amor dos amantes, impulsiona o trabalho dos trabalhadores, aguça o intelecto dos intelectuais. Fora dos manuais, contudo, a vida, a pior professora que há, a professora que invariavelmente reprime, castiga e aniquila todos os seus discípulos, prova que ver o mundo como uma criança é mais angústia que deleite, mais terror que gozo.

A criança em mim, evocada em todo e cada Natal, deslumbra-se e se arrepia ante a aproximação dos festejos. Vê o bebê Jesus triste, acantonado em seu presépio à direita da caixa registradora, e treme. Vê os homens corpulentos e velhos suando sob as roupas felpudas de uma Natal norueguês. Vê, sobretudo, o frenesi de homens e mulheres, pais e mães, pesados em busca dos presentes adequadamente perfeitos. E as ruas cheias de pedintes pobres, jovens pobres e pardos, aprendizes de malabaristas em busca de uns trocados natalinos. Um Natal frenético e triste, que só não dá conta da própria desgraça em virtude da aceleração. Um Natal líquido.

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Às vezes a criança em mim, que a cada Natal nasce novamente, tem as ideias mais exóticas. Se eu fosse todo-presidente, proibia o trânsito de automóveis particulares para sempre, sem exceção, para que aprendêssemos a andar (quanta coisa se perde, da alma da cidade, quando se desaprende a andar). Distribuiria animais de estimação, para que aprendêssemos a amar (primeiro os bichos, fáceis de gostar, depois, os humanos, o grande desafio).

Decretaria, quem sabe, que no Natal nada se pode vender nem comprar.

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E o Natal seria outra coisa, e talvez não ferisse tanto os olhos das crianças com a propaganda de brinquedos, lanches rápidos, roupinhas descoladas. Nem precisasse portanto de senhores de olhar triste encarcerados a poltronas aveludadas. Em troca de uns trocos.

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Ficasse só a alegria singela, decantada por milênios, delicadamente pairando sobre nós como o reflexo da luz no vidro.

O Natal seria tanto melhor quanto menos espanto causasse. Um Natal contínuo, permanente, sereno, em que enfeitaríamos árvores com as nossas próprias mãos - quiçá nossas próprias árvores, verdejantes, em nossos quintais - e espalharíamos luz por todos os cantos. Um Natal que perdesse o impacto do Natal, desse Natal superlativo anunciado promocionalmente em telas gigantes, aos berros. Um Natal simples, que não surpreendesse, não saltasse violentamente ao olhar. Um aniversário de Jesus para celebrar como o aniversário de um filho.

Mais um dia de amor, outro dia para amar.

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus, leram pra mim, quando eu era criança de olhos arregalados. As coisas pareciam mais simples: quando o Verbo não era comprar. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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