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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Narrar a vida

A coisa mais difícil da vida é ver aquilo que é. Então, ser aquilo que se é.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Reencontros são perigosos. Tomo nas mãos a caixa de chocolate Pan - não mais os cigarrinhos politicamente incorretos, mas, agora, pequenos lápis roliços e hidrogenados - e hesito.

Perdida no meio da Rio-Santos, a Mercearia exibe ingenuamente as relíquias da minha infância. Os inesquecíveis Chicletes Mini em sua embalagem sorridente e multicolorida. O suquinho anônimo em embalagens de plástico que imitam carros, tanques de guerra, aviões. Caramelos Nestlé. Pirulitos Dip n' Lik - ou, como dizíamos, dipilinque. Há anos não via coisas assim. Quando as vejo, agora, já não são o que eram. São apenas o que são. 

Um caramelo leva a outro, e as lembranças flutuam numa maré rósea açucarada. Na escola Anjo da Guarda, em Curitiba, corria a lenda de que o pipoqueiro injetava cocaína em caramelos Fruittella para viciar as crianças. Logo, alguém "descobriu" que se tratava de um ex-presidiário, talvez um foragido, com vários homicídios no currículo. Será que se disfarçava de pipoqueiro para traficar e chacinar impunemente? Ou enfim se redimira? Todos temíamos o pipoqueiro da portaria - o que só deixava mais emocionante e incrível a experiência de dar dez passos à luz do sol para trocar nossos centavinhos por um punhado de balas potencialmente viciantes.

Não sei de onde surgiram os boatos, mas é certo que os pais, entre divertidos e espantados, aprovavam o medo coletivo do pipoqueiro. Assim, pensavam, era mais fácil nos manter afastados daquelas deliciosas porcarias. Não pensavam, no entanto, que assim também alimentavam a nossa imaginação: ainda mais insaciável do que o apetite por doces.

Desde pequenos criávamos narrativas para dar sentido à vida. Também para, simplesmente, preencher o tédio. As crianças são muito entediadas; por isso topávamos qualquer aventura. Pular muro, trepar em árvore, roubar beijoca, engolir minhoca, comer terra, atirar pedrinhas. Funcionava.

Mas quando crescemos o tédio se encalacra na alma, pele abaixo da pele, e ganha um sentido existencial. Uma preguiça existencial associada à impotência, à dificuldade esmagadora de aceitar as coisas como elas são. Violentas e sem sentido. Efêmeras.

As narrativas dos adultos são, portanto, mais sofisticadas. Não basta mais um pipoqueiro-criminoso para dar sentido, ou ao menos alguma emoção, à existência diária. É preciso mais, muito mais. Às vezes, as redes sociais ajudam a sedimentar essa narrativa fantasiosa, aventureira e prenhe de sentido, que construímos em nossas vidas adultas, dispostos a tudo para aparecer e "fazer amigos". Às vezes, para meu espanto e admiração, para a minha maravilha, a narrativa se encena nos palcos - ou na literatura.

Enquanto flerto com os caramelos da minha juventude, penso nos adultos à volta. Homens e mulheres como eu, reinterpretando seu lugar no mundo. Algozes que se tornam vítimas, abusadores convertidos em abusados, misóginos agora humanistas, crianças mimadas que se reinventam adultos de história trágica. Mil histórias de superação, mil causos de vitória, mil narrativas edificantes sobre si mesmos. Todos príncipes na vida: no reino dos ideais, professam a palavra.

A coisa mais difícil da vida é ver aquilo que é. Então, ser aquilo que se é.

Ver um doce que parece chocolate, mas não.

Uma bala de açúcar e anilina que quebra os dentes e sufoca crianças. Só.

Uma garota. Um cara. «   ______________________________________________ Siga Males Crônicos no Facebook. (Clique em "obter notificações" na página) Atualizações todas as segundas-feiras. Twitter: http://twitter.com/essenfelder ______________________________________________

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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