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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Somos todos medíocres

Mas podemos deixar de sê-lo. Ousaremos?

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arte: loro verz

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trilha sonora: best of you

» Somos medíocres. Até aí, mera constatação. Ser medíocre significa ser mediano - nem bom nem mau, nem pequeno nem grande, segundo os dicionários. Claro que também significa para nós, muito mais agudamente, ser sofrível, ter pouco valor. Somos isso também, esmagadoramente: medíocres.

Ninguém quer ser medíocre. Ao menos não conheço uma única pessoa que diga quero ser medíocre, notoriamente desprovido de valor. Por isso ninguém toca no assunto, ninguém faz a temível pergunta. Será que eu sou? Você é? Fazê-la invariavelmente significa admitir o óbvio - então, como nas famílias em que os velhos se recusam a enxergar a diferença, seguimos voluntariamente cegos.

Não queremos ser medíocres, porém somos. Por quê?

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A terceira margem do rio é onde enlouquecemos - ou nos afogamos. Em uma margem estão os medíocres, na outra, os extraordinários, homens e mulheres fabulosos, cujo rastro perdura muito além de seus dias. No meio disso, sob a correnteza, os que temos coragem de saltar tremem e se debatem dia e noite.

Apesar do nome pavoroso, a mediocridade é mãe terna e acolhedora. Um reino de cumplicidade, afagos e tapinhas nas costas. "Não existem duas palavras mais nocivas na língua inglesa do que 'good job'", ataca o maestro de Whiplash, filme sobre a relação entre o mestre psicótico e seu promissor aluno, bateirista de jazz. Talvez tenha razão.

Ali, assédio e opressão, violência e barbárie são usados como instrumentos heterodoxos de incentivo. Ninguém sabe como cruzar a margem ensolarada da mediocridade rumo ao desconhecido. Talvez não tenha razão. Talvez não funcionem nem tapinhas nem pontapés. A verdade é que essa travessia é misteriosa e individual.

Pessoalmente, não imagino que seja necessário oprimir para transcender. Chicotear picasso até que produza um Picasso. Mas arrisco imaginar que o primeiro passo para avançar além da mediocridade é reconhecê-la. Sim, somos medíocres. Desconfio que mesmo os extraordinários se imaginem quase diariamente medíocres - não diante de mim ou de você, mas diante do que poderiam ser.

"Um bom trabalho" precisa ser mais do que medíocre, mediano, comum. Precisa ser raro. Banalizamos a genialidade no dia a dia.

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Honestamente, eu sou medíocre também. A contragosto, é claro, e a despeito de currículo e tapinhas nos ombros. A despeito de "good jobs" às segundas-feiras. Minha mediocridade me incomoda demais, como uma ferida que as tardes salgam. É por isso que leio e escrevo diariamente, não importa para quem ou como. Nas calmarias do rio, nas tréguas de tempestade, até consigo avançar uma braçada ou duas para deixar de ser medíocre. Quando canso, quando mareio, recuo. A correnteza me arrasta para trás, para a margem sólida e segura dos medíocres. Ali penso que eu poderia dormir um pouco mais. Só um pouco mais.

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É natural cansar, pausar, duvidar. Cruzar o rio é um jogo de avanços e recuos, e não uma corrida de explosão. Mais importante é retomar logo o passo. 

É claro que quem não se incomoda com isso, não se inquieta por ser nem pequeno nem grande, já que cercado de inúmeras pessoas nem pequenas nem grandes, não avança. Mas também não se afoga. Não há riscos à margem (especialmente se a margem é o centro de tudo). Ali permanecemos confortáveis.

Se a mediocridade é uma escolha, não há muito a fazer. O mundo precisa de medianos, muitos medianos, pessoas nem pequenas nem grandes nem boas nem más que deem parâmetro a todos os valores. Mas se a mediocridade é involuntária, uma sabotagem do corpo e da alma, gostosamente acomodados à vida, então é preciso-necessário despertar.

Despertar para a mais inglória de todas as batalhas, em que as chances de êxito são tão desprezíveis que empalidecem e paralisam toda a gente incerta de si. Toda a gente que não sabe exatamente onde quer chegar - essa a mais difícil cartografia, esse o primeiro passo.

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Não basta um surto de coragem. Os incertos morrem no caminho, afogados, ou retornam à margem errada.

A disciplina da travessia é lenta e obstinada. 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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