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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Ficou fácil demais

Ficou tudo mais fácil – às vezes, fácil demais. Os aplicativos prometem resolver a vida inteira: trânsito, transporte, pizza, viagens, hospedagens, amor.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Outro dia, um amigo dava instruções sobre como chegar à sua casa para um jantar. Eu, calado, apenas ouvia. É paralela de tal rua, você segue por tantas quadras em tal avenida, vira no posto tal à direita, depois novamente à direita, no segundo cruzamento, e, passando a padaria, voilà: é a casa de muro amarelo.

Escutei com alguma impaciência, sem entender muito bem a necessidade daquela longa (dois ou três minutos, possivelmente) explanação.

Por sorte, outro amigo o interrompeu antes que repetisse o passo a passo mais uma vez. Não precisa explicar, disse. A gente põe no waze. Com um sorriso amarelo, o anfitrião se rendeu. É, também funciona.

Quando cheguei a São Paulo, já maior de 18, lembro da dificuldade que era dirigir pela cidade. Antes de sair, anotava minuciosas instruções. O porta-luvas estava sempre estufado com o guia de ruas, em papel, vertendo post-its de todas as cores por todas as margens. Havia um sistema para identificar os endereços pessoais - amigos e a minha própria casa -, profissionais, de serviços médicos etc. No mais das vezes, intimidado com a possibilidade de me perder, nem saía de casa. Quantos compromissos recusava por saírem da minha zona de conforto, ou melhor, minha zona de tráfego? Tem esse bar ótimo na Freguesia do Ó, aquela festa incrível no Ipiranga. Não, obrigado.

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Por outro lado, usava muito mais transporte público. A pergunta "é perto do metrô?" perpassava todas as possibilidades notívagas. Se fosse, já sabia como chegar. Se não, tentava o ônibus, muito mais complicado de entender. Em último caso, ficava em casa. O preço do táxi em São Paulo sempre assustou.

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Hoje ficou tudo muito mais fácil, embora eu agora só use transporte público para fugir do trânsito, e não mais para enaltecer a sabedoria viária dos motoristas em detrimento de minha própria estupidez geográfica. Basta o nome da rua e o número. O resto, o celular acha.

Ficou tudo mais fácil - às vezes, fácil demais. Os aplicativos prometem resolver a vida inteira: trânsito, transporte, pizza, viagens, hospedagens, amor.

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Ficou tudo tão fácil que os prazeres difíceis, os que vêm com algum custo, perdem espaço. Era de certa forma jubiloso chegar à casa do Matheus depois de uma hora batendo cabeça, parando de posto em posto, esquina em esquina, para pedir informações. Nosso pequeno Everest: um piquenique na Cantareira, ao qual se chegava com um mapa manuscrito cheio de nomes de rua em minúscula letra cursiva e um X indicando o tesouro.

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Cada homem e cada mulher torna-se hoje algo onisciente. Qualquer dúvida de bar é resolvida em segundos silenciosos de consulta ao Google. Todos têm certeza de tudo, nada mais pode ser contestado. É claro que o Woody Allen já ganhou Oscar: olha aqui na Wikipedia. Olhamos, agradecidos, mas um tanto taciturnos. O tema poderia ter rendido trinta minutos de apaixonado debate sobre virtudes e maneirismos do diretor, sobre a corrupção da Academia, sobre a sétima arte no século 20. Mas são precisos apenas 3 ou 4 segundos para enterrar o papo.

Para o professor, o desafio é ainda maior. Como convencer o estudante a enfrentar um prazer difícil como ler Guimarães Rosa ou frequentar o teatro? Não, não serve ler a sinopse nem ver o filme, exijo a experiência de ir ao teatro junto com a fruição da peça, de maneira que esses prazeres, ou dores, não se dissociem.

Fácil demais. As crianças fazem duas ou três aulas de qualquer coisa - piano, balé, natação - e partem para a próxima quando a brincadeira complica. A sociedade do entretenimento, em que a lógica da diversão atravessa todas as atividades humanas (no mundo acadêmico, fala-se na importância da gamificação de tudo) recusa qualquer esforço, qualquer possibilidade de frustração.

Ainda assim, a vida nos frustra, constantemente, alheia aos aplicativos. A vida dá pau, regularmente. Ninguém sai dela sem sofrer. Os prazeres difíceis, um livro difícil, um filme difícil, uma viagem sem aplicativo nem dinheiro, apenas tornam esse sofrimento mais evidente, arrancam o dominó, arruínam a máscara.

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Não recusemos mais, pois, prazeres complexos. 

Perto do osso a carne tem mais sabor. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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