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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Autoestrada das lamentações

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Atualização:

»Pensa em todos os seus pecados. Pensa naquela vez em que falou o que não deveria ter falado, pensa na humilhação da moça, pensa que é preciso ligar mais para os pais e amigos, pensa no grande amor desperdiçado, pensa que deveria ser menos preconceituoso, menos egoísta, menos mentiroso, menos cínico, mais gentil. Naquela vez em que furtou, naquela vez em que traiu, naquela vez em que cobiçou ou agrediu. Em todos os seus pecados ele pensa.

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Expia. As costas doem persistentemente. Sente-se comprimido num cubo invisível e hostil. É uma dor tão aguda e lancinante que nutre secretamente o desejo de fazer algo a respeito: implodir o cubículo e caminhar um pouco, esticar as pernas e braços, respirar o ar frio da madrugada.

No entanto ele fica na cabine, estoico. Expia os pecados imaginariamente. Fantasia uma mulher, sente saudade, acelera e desacelera.

Volta e meia as pálpebras boicotam os olhos - mas ele não pensa em dar meia volta. Sorrateiras, quando menos espera, fecham. Deslizam tão suavemente para baixo que ele mal percebe o cochilo se aproximando. Então, num solavanco, acorda. Foram três ou quatro segundos de cochilo.

Mas não houve risco desta vez; o carro permanecia parado.

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O rádio anunciava o desastre. Está tudo parado. A cidade está travada, as estradas agonizam. Ainda assim, ainda que soubesse da desgraça premeditada, quis viajar. Haveria tempo para pensar na vida, e, principalmente, para refletir sobre os seus pecados. Para rezar duzentos Pais Nosso e três mil Aves Maria. Chegaria ao litoral beatificado.

Todo motorista de feriado prolongado é um santo arrastando-se à beatificação à taxa de um metro por minuto.

São três dias de folga: sexta (o feriado), sábado e domingo. Ao menos 14 horas de peregrinação - sete para descer rumo ao litoral, sete para subir rumo à metrópole a cem quilômetros dali. Chega-se exausto em ambos os destinos, o que exige repouso imediato. Mais umas horas de sono computadas e pronto: matematicamente o dia extra foi inteiramente investido no traslado.

Chegando à praia, fatalmente - já sabe - faltará água. Faltará comida nos supermercados. O sinal do celular vai falhar. Haverá mais congestionamentos, o tempo inteiro congestionamentos; cada esquina, cada metro estarão ocupados por outro automóvel. Seu último modelo, que acelera de zero a cem em cinco segundos, continuará se arrastando a cinco ou seis quilômetros por hora.

A praia, lotada. O som das baladas, dos motores, dos gritos histéricos dos que, como ele, chegaram lá. Conseguiram ver o mar azul e alheio (pela janela do carro). E apenas isso.

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Ainda assim, o motorista não dispensa um feriado. Nesse dia, dia de culto, une-se a milhões de motoristas na expiação coletiva de seus pecados. A autoestrada é o muro das lamentações onde se ouve, nos intervalos do rádio, os gemidos de uma nação inteira. As promessas de correção e altruísmo. Os silêncios indignados dos pecadores. Por que a vida é assim? E: por que eu sou assim? Tudo precisa mudar. Nunca mais.

Mas no próximo feriado estarão todos lá. Os milhares, os milhões. Na hipnose de uma missa coletiva, um sermão interminável sobre o sentido da vida.

A vida, esse congestionamento sem fim que serpenteia campos e cidades, montanhas e praias e deságua em si mesmo. Cíclico, inescapável. Como os olhos dela.

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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