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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|O tempo acelera, atropela

Quando era menino, incomodava o arrastar dos dias sem fim, a monotonia. Adulto, vi que o tempo acelera. Atropela.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 

arte: loro verz

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» Quando eu era menino, pensava como menino, sentia e falava como menino.

E lembro do tédio que era o Carnaval, quando a família, em busca de tranquilidade, se fechava no campo. Como todo adolescente, era avesso à monotonia do cotidiano besta: as manhãs lentamente se espraiando no horizonte, as tardes modorrentas e quentes, as noites abafadas e silenciosas. Como todo adolescente, odiava a tranquilidade.

Não era a paisagem em si; a natureza sempre me encantou. O pulsar de seu amor bruto, imperscrutável, quase indiferente, palpitando vigorosamente nas montanhas, oceanos e matas. O chamado da natureza selvagem.

Incomodava o arrastar do tempo, e não a pujança da natureza, que fazia os dedos tamborilarem na mesa, impacientes. O tempo, que vacilava em lugares esquecidos pelo homem.

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Os anos passaram, a vida acelerou. Quando cheguei à idade adulta deixei para trás as atitudes próprias das crianças. E logo, mais cedo do que imaginava, passei a cobiçar o tédio perdido; cobiçar, na verdade, a possibilidade de um tempo mais lento, que se abrisse a todas as possibilidades.

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O tempo na cidadezinha se abre ao futebol, à hortinha, ao churrasco, ao namoro atrás da igreja, ao bar e à cerveja, às caminhadas, às leituras, ao pensamento vadio. Mesmo que nada aconteça, ou por causa disso, tudo acontece em potência. Tudo é potencialmente possível, faltando apenas a disposição para atualizar os planos, corporificá-los.

Em São Paulo, o tempo confinado a cinquenta metros quadrados simultaneamente comprime e acelera. As horas escorrem entre os dedos: não há tempo para nada em São Paulo.

Tudo acontece simultaneamente na cidade: então, parece não haver tempo para mais nada. 

Enquanto no campo nada acontece e tudo pode acontecer, é como se na capital tudo já acontecesse e paradoxalmente murchassem nossas possibilidades de fazer algo novo.

Caminho no parque e volto para casa. De repente, o dia já acabou. Ligamos a TV, uma leitura rápida e dormimos. Acordamos tarde. Há muito acontecendo, mas paradoxalmente a potência de ação se esvazia: ou masp ou ibirapuera, ou amigos ou família, ou estudo ou bar, ou caminhar ou fazer compras. Com sorte, esprememos duas atividades no mesmo dia, mas já resultamos exaustos.

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Tudo muito grande, muito vasto. Muita energia drenada por indefinições; trânsito, multidão.

O Carnaval não volta. É outro. Também não volta a meninice.

Mas se ao menos pudéssemos descomprimir o tempo, convidá-lo a jogar bola no campinho, sorrir. Se pudéssemos abrir de novo seus braços sisudos para que nos oferecessem a potência de todas as coisas. «

 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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