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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|A beleza triste das manifestações

Triste beleza. Protestos políticos desse calibre parecem mais inspiradores quando vistos dos helicópteros das televisões. De perto ninguém é normal, de perto nada é como o nosso ideal.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» A cena tem uma beleza triste - ou talvez seja uma alegria perigosa.

A beleza: os milhares de manifestantes marchando pela cidade. Homens, mulheres, crianças, cachorros. Velhos, bebês. A potência das vozes plurais, confusas, sobrepondo-se umas às outras, ensurdecendo-se sem, no entanto, que reste dúvida sobre o que acontece. Protestam. Querem fazer valer suas esperanças, oxigenar os sonhos, purgar fantasmas à luz do sol. Querem mais e melhor. E isso é bonito.

Triste beleza. Protestos políticos desse calibre parecem mais inspiradores quando vistos dos helicópteros das televisões, quando acompanhados pelas telas planas de ultrarresolução, com arranjos orquestrais solenes ao fundo. Imensas bandeiras, o vibrante verde e amarelo multiplicado por centenas de milhares de cantos: frontes, punhos, peitos, postes, muros, janelas.

No macro, à distância, uma voz, um anseio. Lutamos por um país melhor.

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Então vem a tristeza: de perto ninguém é normal, de perto nada é como o nosso ideal. Nas miudezas da multidão, quando a massa se define em rostos, e os rostos carregam suas próprias bocas e olhos, o canto desafina. No varejo, os sonhos não são solenes; no varejo, não são todos os olhos em uma direção. Alguns sim, outros não. Do infinito ao umbigo, contemplam.

E então os perigos: quem sabe dona Marta não quer um país melhor como eu ou você, porque não entende que as fronteiras do país são infinitas vezes maiores que as da sua rua. Talvez seu Antonio só queira uma empregada barata - de preferência, que durma em casa. Pedro lamenta o fim das mulheres honestas. Os olhos da multidão, assim como no mito do bom selvagem, frequentemente parecem melhores do que são. Às vezes, o verniz verde e amarelo não esconde a selvageria.

A selvageria é o coração das trevas das manifestações - de esquerda, de direita e do centro do próprio umbigo. A violência egoísta, a miopia social que nega alteridade. A selvageria espreita em cada marcha, em cada hino.

 

Só o amor constrói, diz a máxima que já se tornou clichê. Onde está o amor, nas ruas? Como nas piores torcidas organizadas, os manifestantes de vermelho e os manifestantes de amarelo entoam cantos de guerra, preparam o embate. Pedem morte, fuzilamento, exílio. O desejo de justiça impulsiona sim a história para frente, mas é o amor o cimento de todas as histórias. O que mantém os melhores ideais acesos, e coesos, é a paixão. A revolução é o amor.

Mas talvez tudo isso faça parte da inexorável marcha da história, que, de perto, não vemos.

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Talvez seja preciso incendiar tudo para que o terreno fertilize. E então, só então, as flores brotem novamente.  «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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